Anita Malfatti

ANITA CATARINA MALFATTI
(74 anos)
Pintora, Desenhista, Gravurista e Professora

* São Paulo, SP (02/12/1889)
+ São Paulo, SP (06/11/1964) 

Filha do engenheiro italiano Samuel Malfatti e de mãe norte-americana Betty Krug, Anita Malfatti nasceu no ano de 1889, em São Paulo. Segunda filha do casal, nasceu com atrofia no braço e na mão direita. Aos três anos de idade foi levada pelos pais a Lucca, na Itália, na esperança de corrigir o defeito congênito. Os resultados do tratamento médico não foram animadores e Anita Malfatti teve que carregar essa deficiência pelo resto da sua vida. Voltando ao Brasil, teve a sua disposição Miss Browne, uma governanta inglesa, que a ajudou no desenvolvimento do uso da mão esquerda e no aprendizado da arte e da escrita.

Iniciou seus estudos em 1897 no Colégio São José de freiras católicas, situado à Rua da Glória. Aí foi alfabetizada. Posteriormente passou a estudar em escolas protestantes: na Escola Americana e em seguida no Mackenzie College onde, em 1906, recebeu o diploma de normalista.


Surge a Pintora

Nesse meio tempo faleceu Samuel Malfatti, esteio moral e financeiro da família. Sem recursos para o sustento dos filhos, Dona Betty Krug passa a dar aulas particulares de idiomas e também de desenho e pintura. Chegou a submeter-se à orientação do pintor Carlo de Servi para com mais segurança ensinar suas discípulas. Anita Malfatti acompanhava as aulas e nelas tomava parte. Foi portanto sua própria mãe quem lhe ensinou os rudimentos das artes plásticas.

"Eu tinha 13 anos, e sofria porque não sabia que rumo tomar na vida. Nada ainda me revelara o fundo da minha sensibilidade (...) Resolvi, então, me submeter a uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte. Achava que uma forte emoção, que me aproximasse violentamente do perigo, me daria a decifração definitiva da minha personalidade. E veja o que fiz. Nossa casa ficava próxima da estação da Barra Funda. Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura."
(Anita Malfatti)

Anita Malfatti  -  "A Estudante"
Alemanha

Anita Malfatti pretendia estudar em Paris, mas sem a ajuda do pai, parecia impossível, tendo em vista que sua avó vivia entrevada numa cama e sua mãe passava o dia dando aulas de pintura e de idiomas.

Anita Malfatti tinha umas amigas, as irmãs Shalders, que iam viajar à Europa para estudar música. Assim surgiu a ideia de acompanhá-las à Alemanha e seu tio e padrinho, o engenheiro Jorge Krug, aceitou financiar a viagem.

Anita Malfatti e as Shalders chegaram em Berlim em 1910, ano marcante na história da Arte Moderna Alemã.

"Os acontecimentos precipitavam-se tão depressa, que eu me lembro de ter vivido como dentro de um sonho. Nada do que acontecia se assemelhava com o que havia acontecido no Brasil."

"Comprei incontinente uma porção de tintas, e a festa começou."
(Anita Malfatti)

Berlim era então o grande centro musical da Europa. O grupo Die Brucke fazia diversas exposições expressionistas e foi na Alemanha que Anita Malfatti travou contato com a vanguarda europeia. Acompanhando suas amigas às aulas no centro musical, acabou recebendo a sugestão para estudar no ateliê do artista Fritz Burger.

Fritz Burger era um retratista que dominava a técnica impressionista. Foi o primeiro mestre de Anita Malfatti. Ao mesmo tempo, ela prestou os exames para ingressar na Real Academia de Belas Artes o que efetivamente aconteceu no início do ano letivo.

Durante as férias de verão, Anita Malfatti e as amigas foram às montanhas de Harz, em Treseburg, região frequentada por pintores. Continuando sua viagem, visitou a 4° Sonderbund, uma exposição que aconteceu em Colônia na Alemanha, na qual conheceu trabalhos de pintores modernos, incluindo-se o até hoje tão admirado Van Gogh.

Teve aulas também com Lovis Corinth nome bem mais conhecido do que seu primeiro mestre. Lovis Corinth, um tipo bem germânico, não tinha a menor paciência com seus alunos. Mas com Anita Malfatti era diferente. Talvez porque se identificasse com ela. Alguns anos antes sofrera um AVC que, como sequela, tal como a aluna, lhe deixara alguma dificuldade motora na mão direita.

Anita Malfatti estava cada vez mais interessada pela pintura expressionista, desejava aprender sua técnica. Em 1913, iniciou aulas com o professor Ernest Bischoff Culm da mesma escola de Lovis Corinth.

Com a instabilidade causada pela aproximação da guerra, Anita Malfatti resolveu deixar Berlim, antes passando por Paris.

Anita Malfatti  -  "A Boba"
1914 - Primeira Exposição Individual

"Voltando ao Brasil, só me perguntavam pela Mona Lisa, pela glória da Renascença, e eu… nada."

"Minha família e meus amigos, eram de opinião de que eu deveria continuar meus estudos de pintura. Achavam meus quadros muito crus, mas, felizmente, muito fortes, o que prometia para o futuro uma pintura suave, quando a técnica melhorasse."
(Anita Malfatti)

São Paulo, 1914, Anita Malfatti tinha 24 anos e, com mais de quatro anos de estudo na Europa, finalmente voltava para o seio familiar. A cidade crescia, mas o ambiente artístico ainda era incipiente, o gosto predominante ainda era pela arte acadêmica. Ao mostrar suas obras - nada acadêmicas - Anita Malfatti tentava explicar os avanços da arte na Europa, onde os jovens haviam levado às últimas consequências as conquistas vindas do impressionismo.

Anita Malfatti ainda continuava firme no desejo de partir mais uma vez em viagem de estudos. Sem condições financeiras, tentou pleitear uma bolsa junto ao Pensionato Artístico do Estado de São Paulo. Por essa razão, montou no dia 23 de maio de 1914, uma exposição com obras de sua autoria, exposição essa que ficou aberta até meados de junho.

O senador José de Freitas Valle foi visitar essa exposição. Dependia dele a concessão da bolsa. Mas o influente político não gostou das obras de Anita Malfatti, chegando a criticá-las publicamente. Entretanto, independentemente da opinião do senador, a bolsa não seria concedida. Notícias do iminente início da guerra na Europa, fizeram com que o Pensionato as cancelasse. Foi aí que, mais uma vez, financiada pelo tio, o engenheiro e arquiteto Jorge Krug, Anita Malfatti embarcou para os Estados Unidos.

Anita Malfatti  -  "O Farol"
Estados Unidos

"Aí começa o período maravilhoso de minha vida. Entrei na Independent School of Art de Homer Boss, quase mais filósofo que professor. (…) O maior progresso que fiz na minha vida foi nesta ilha e nesta época de ambientes muito especiais. Eu vivia encantada com a vida e com a pintura."

" Era a poesia plástica da vida, era festa da forma e era a festa da cor."
(Anita Malfatti)

No início de 1915, Anita Malfatti já se encontrava em Nova York e matriculada na tradicional Art Student's League. Nessa escola, Anita Malfatti ia de um professor a outro na tentativa de encontrar o caminho que sonhava para seus trabalhos. Após três meses de estudos, desistiu de qualquer curso de pintura ou desenho nessa instituição por demais conservadora, reservando-a apenas para os estudos de gravura. Trazendo em sua pintura a marcas do expressionismo, dificilmente Anita Malfatti conseguiria adaptar-se a uma academia de ensino tradicional. Sobre sua experiência na instituição, escreveria de forma lacônica, mas muito claramente:

"Fui aos Estados Unidos, entrei numa academia para continuar meus estudos, e que desilusão! O professor foi ficando com raiva de mim, e eu dele, até que um dia, a luz brilhou de novo. Uma colega me contou na surdina que havia um professor moderno, um grande filósofo, incompreendido e que deixava os alunos pintar à vontade. Na mesma tarde procuramos e professor, claro."

O tal professor da Independent School Of Art, era Homer Boss, artista hoje quase esquecido pelos estudiosos da arte norte-americana.

Nas férias de verão, Homer Boss levou os alunos para pintar na costa do Maine, na ilha de Monhegan. Esse estado litorâneo mais ao nordeste, fronteira com o Canadá, tornara-se há muito o refúgio dos artistas. Foi nessa pitoresca ilha que a ainda não famosa aluna de Homer Boss pintou, entre outras, a belíssima paisagem intitulada "O Farol", uma de suas obras primas. Passado o verão, Anita voltou à Independent School of Art. Em meados de 1916, preparava-se para voltar ao Brasil.

Anita Malfatti  -  "A Ventania"
De Volta ao Brasil

Em 1916, Anita Malfatti se encontrava de novo em casa, no aconchego familiar.

"Eram caixões de obras de arte, desenhos, gravuras e quadros de todos os tamanhos. Minha família e meus amigos estavam curiosos para ver meus trabalhos. Mas que efeito!"
(Anita Malfatti)

Nada daquilo que Anita Malfatti trazia dos Estados Unidos, se assemelhava à "pintura suave", nada daquilo esperado e imaginado por seus amigos e parentes. Sua força masculina, que causara estranheza na sua primeira individual em 1914, atingira o ponto máximo de exagero. Anita Malfatti inconscientemente, "rompera" com as regras da pintura acadêmica tão apreciada por seus parentes. A surpresa e a incompreensão foram inevitáveis. As obras que a pintora trouxe dos Estados Unidos, deixaram em sua família uma sensação tão grotesca, que o mal estar durou por anos. É fato que o assunto tornou-se "tabu" entre os membros da família e Anita Malfatti diria depois laconicamente:

"Quando viram minhas telas, todos acharam-nas feias, dantescas, e todos ficaram tristes, não eram os santinhos dos colégios. Guardei as telas."

Depois, seria mais específica, dizendo:

"Ficaram desapontados e tristes. Meu tio, Dr. Jorge Krug, que tanto interesse teve na minha educação, ficou muito aborrecido. Disse ele: 'Isto não é pintura, são coisas dantescas'"

A expressão "coisas dantescas", ficaria para sempre gravada na mente e no coração de Anita Malfatti. A incompreensão foi geral. Ela logo se deu conta do quanto suas telas, que traduziam sua alma, estavam distantes das do ambiente acadêmico que a rodeava. No mesmo depoimento de 1951, a pintora lembraria:

"Então, pela primeira vez em minha vida, comecei a entristecer-me pois estava certa de que meu trabalho era bom; tanto os modernos franceses como os americanos haviam dito espontaneamente, desinteressadamente. Só desejei esconder meus quadros, já que, para me consolar, ou outros acharam que eu podia pintar como quisesse. Eles estavam desconsolados, porque me queriam bem. Entretanto eu sabia que aquela crítica não tinha fundamento, especialmente porque estava dentro de um regime completamente emocional. Eu nunca havia imitado a ninguém; só esperava com alegria que surgisse, dentro da forma e da cor aparente a mudança; eu pintava num diapasão diferente e era essa música da cor que me confortava e enriquecia minha vida."
(Anita Malfatti)

Anita Malfatti  -  "A Onda"
1917 - Segunda Exposição Individual

Em 1917 Anita Malfatti resolveu promover sua segunda exposição individual.

"A exposição da senhorita Malfatti, toda ela de pintura moderna, apresenta um aspecto original e bizarro, desde a disposição dos quadros aos motivos tratados em cada um deles. De uma rápida visita ao catálogo, o visitante há de inteirar-se logo do artista que vai observar. Tropical e Sinfonia colorida, são nomes que qualquer pintor daria até a uma paisagem, menos a uma figura, como tão bem fez a visão impressionista de sua autora. Essencialmente moderna, a arte da senhorita Malfatti, se distancia consideravelmente dos métodos clássicos. A figura ressalta, do fundo do quadro, como se nos apresentasse, em cada traço, quase violento, uma aresta do caráter do retratado. A paisagem é larga, iluminada, quase sempre tocada de uma luz crua, meridiana, que põe em relevo as paredes alvas, num embaralhamento de vilas sertanejas, onde a minudência se afasta para a mais forte impressão do conjunto."

Os acontecimentos a partir da primeira semana se deram de forma tão rápida e surpreendente, que Anita Malfatti só se atreveria a narrá-los 34 anos depois:

"A princípio foram os meus quadros muito bem aceitos, e vendi, nos primeiros dias, oito quadros. Em geral depois da primeira surpresa, acharam minha pintura perfeitamente normal. Qual não foi a minha surpresa quando apareceu o artigo crítico de Monteiro Lobato."
(Anita Malfatti)

"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura… Se Anita retrata uma senhora com cabelos geometricamente verdes e amarelos, ela se deixou influenciar pela extravagância de Picasso e companhia - a tal chamada arte moderna."
(Monteiro Lobato)

Após a crítica de Monteiro Lobato, publicada em O Estado de São Paulo, edição da tarde, em 20 de dezembro de 1917, com o título de "A Propósito da Exposição Malfatti", as telas vendidas foram devolvidas, algumas quase foram destruídas a bengaladas; o artigo gerou uma verdadeira catilinária em artigos de jornais, contra Anita Malfatti. A primeira voz que se levantou em defesa da pintora, ainda que timidamente, foi a de Oswald de Andrade.

Num artigo de jornal, ele elogiou o talento de Anita Malfatti e parabenizou pelo simples fato dela não ter feito cópias. Pouco depois, jovens artistas e escritores, começando a entender aquele jeito de pintar e possuídos pelo desejo de mudança que as obras de Anita Malfatti suscitaram, uniram-se a ela, como: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Guilherme de Almeida.

Anita Malfatti iniciou estudos com o pintor acadêmico Pedro Alexandrino no ano de 1919, e também com o alemão George Fischer Elpons um pouco mais avançado do que o velho mestre das naturezas mortas. Foi nessa ocasião que conheceu Tarsila do Amaral que tinha aulas com os mesmos professores.

Depois do pai, o tio Jorge Krug, que a havia ajudado tanto, também faleceu e Anita Malfatti precisou buscar caminhos para vender suas obras. Pedro Alexandrino já era um pintor de renome e vendia com muita facilidade seus trabalhos. Anita Malfatti buscou essa aproximação sendo sua aluna, embora muitas interpretações apontem para a versão de que ela o procurou para reestruturar sua pintura.

Seus biógrafos acreditam que o artigo de   Monteiro Lobato foi agressivo e até maldoso e que deixou marcas profundas na vida e na obra da artista. Mas, essa versão é contestada por alguns poucos, pois ao ler na íntegra a crítica de Monteiro Lobato, verificamos que o título original nunca foi "Paranoia ou Mistificação" e sim, "A Propósito da Exposição Malfatti", e em muitos trechos Anita Malfatti é elogiada pelo crítico. Mas o certo é que ela ficou arrasada com a crítica de Monteiro Lobato. Ficou magoada pelo resto da vida, mas não o suficiente para destruir sua força de mulher destemida e ousada.

Apesar da mágoa, Anita Malfatti ilustrou livros de Monteiro Lobato e na década de 40 participou de um programa na Rádio Cultura chamado "Desafiando os Catedráticos", juntamente com Menotti Del Picchia e Monteiro Lobato. Os ouvintes telefonavam fazendo perguntas para que o trio respondesse.


A Semana de Arte Moderna de 1922

Após a enorme confusão causada por Monteiro Lobato, a vida de Anita Malfatti começou a ter certa normalidade. O tempo que se seguiu após a exposição, foi de assimilação do novo, da percepção daquilo que até então não fora nem sonhado.

"Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente que tomara conta da cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de obras que se chamavam O homem amarelo, A mulher de cabelos verdes."

"Assisti bem de perto essa luta sagrada e palavra que considero a vida artística de Anita Malfatti um desses dramas pesados que o isolamento dos indivíduos apaga para sempre feito segredo mortal. O povo passa, povo olha o quadro e tudo neste mostra vontade e calma bem definidas. O povo segue seu caminho depois de ter aplaudido a obra boa sem saber que poder de miserinhas cotidianas maiores que o Pão de Açúcar aquela artista bebeu diariamente com o café da manhã."
(Mário de Andrade)

Após o período de recesso, a Semana de Arte Moderna, mais uma vez, movimentou a vida artística insípida de São Paulo. Anita Malfatti participou dela com 22 trabalhos.

"Recordo-me que no dia da inauguração, o velho conselheiro Antônio Prado, com grande espanto da comitiva, quis comprar meu quadro 'O Homem Amarelo', porém, Mário de Andrade acabava de adquiri-lo. A plantinha havia vingado."

"Foi a noitada das surpresas. O povo estava muito inquieto, mas não houve vaias. O teatro completamente cheio. Os ânimos estavam fermentando; o ambiente eletrizante, pois que não sabiam como nos enfrentar. Era o prenúncio da tempestade que arrebentaria na segunda noitada"

Anita Malfatti estava feliz entre o círculo modernista, uma vez que ele vinha ao encontro de suas aspirações artísticas, entraria também para o comentado grupo dos cinco.

Anita Malfatti  -  "A Estudante Russa"
A Europa nos Loucos Anos 20

"Mário de Andrade lia uma conferência. Ao terminar a leitura, o Drº Freitas Valle num grande gesto levantou-se de seu trono e encaminhou-se para mim, o que me assustou de tal maneira que perdi o controle… Ele realmente chegou-se para junto de mim e disse mesmo de verdade que eu poderia embarcar para a Europa em viagem de estudos… - qualquer coisa me aconteceu, não sei se voei pelo telhado ou se afundei no chão… então surgiu uma dama, eu não a conhecia, que me reconfortou e rindo-se muito da minha confusão, afirmava ser aquilo verdade… Era Dona Olívia…"

Dessa forma, Anita Malfatti embarcava mais uma vez, em viagem de estudos para a Europa, ou melhor dizendo, para Paris. Seriam cinco anos de estudos pela bolsa do Pensionato. Este seria o último e o mais longo período de Anita Malfatti fora do Brasil.

Em agosto de 1923, embarcando pelo vapor Mosella rumo à França, aquela jovem baixa, com o lenço displicentemente esquecido sobre a mão direita, tinha então 33 anos. Mário de Andrade que não conseguiu chegar a tempo da partida de Anita Malfatti, enviara-lhe o seguinte telegrama:

"Querida amiga choro de raiva automóvel maldito escrevo hoje contando minha saudade e desespero perdoa mil beijos nas tuas mãos divinas boa viagem felicidades. Mário. São Paulo-21-8-1923."

A guerra que perdurara por anos, pôs um ponto final aos hábitos e costumes da belle époque. Foi fatal também para o academismo. Agora seus antigos espaços eram ocupados pela arte moderna, que com grande vitória e sucesso se espalhara por todos os cantos e continuava em expansão acelerada nos salões, galerias e coleções. Há muito tempo, Paris atraia os artistas brasileiros - que eram e continuavam acadêmicos - mas agora, nesse 1923, o modernismo brasileiro estava em Paris, atualizando-se.

E Anita Malfatti estava lá, na tentativa incansável de encontrar-se. Apesar das muitas dúvidas que ainda tinha em relação a que caminho seguir na sua arte, Anita Malfatti não deixou de trabalhar, de produzir. Logo no início do estágio francês, ela parece ter se "aconselhado" com o pintor Maurice Denis, possivelmente atraída pelos aspectos da pintura religiosa.

Nesse último estágio, uma das características mais fortes de Anita Malfatti, era a busca por uma postura menos polêmica, em comparação com a época norte-americana. A impressão que se tem, é de que ela procurava por uma espécie de classicismo moderno. Na Escola de Paris, no pós-guerra, muitos pintores das mais diversas origens, passavam pela experiência da releitura da arte de séculos passados, como Picasso, por exemplo. Nessa fase, que pode-se dizer, "um aprender de novo", Anita Malfatti testou várias possibilidades, e frequentemente produzia obras interessantes. Estudou muito, aprendeu muito, mas perdeu um pouco da sua audácia, com aquela urgência constante de "se contar" à tela, agora se continha, obedecendo as ordens formais da pintura.

Nesses cinco anos, a crítica francesa notaria o trabalho da pioneira, algumas telas como "Interior de Mônaco", "A Dama de Azul", "Interior de Igreja" e "A mulher do Pará", seriam as obras mais destacadas pela crítica internacional nesses anos de estudo e apresentação. A crítica francesa seria unânime também nos elogios feitos aos desenhos:

"Sua personalidade única torna impossível toda tentativa de apadrinhamento, mesmo suntuoso. Quanto aos desenhos de nus, de uma fatura tão pessoal, tão nítida, poucos artistas de escola moderna podem apresentá-los tão notáveis. A crítica foi unânime a este respeito."

As telas interiores-exteriores, ocupados por uma figura feminina, e as exteriores-interiores, também com figuras femininas, seriam a produção mais válida e permanente de Anita Malfatti do estágio francês, com suas "mulheres" solitárias, reclinadas ao balcão. Assim, Anita Malfatti entremostrava sua solidão.


Brasil 1928

No final de setembro de 1928, Anita Malfatti já se encontrava no Brasil.

"A ilustre artista mudou muito a arte dela (...) Também (...) vem encontrar os companheiros antigos bastante modificados e reforçados. Terá agora mais facilidade em ser compreendida e estimada no seu valor."
(Mário de Andrade)

O ambiente artístico, encontrado por Anita Malfatti na volta, era bem diferente do que deixara em 1923. O grupo inicial evoluíra muito, surgiam novos adeptos e novos movimentos. O número de artistas plásticos também crescera. Na chegada, Mário de Andrade - o maior e melhor amigo de Anita Malfatti - noticiou imediatamente sua chegada, relembrando quem ela era:

"O nome de Anita Malfatti já está definitivamente ligado à história das artes brasileiras pelo papel que a pintora representou no início do movimento renovador contemporâneo. Dotada duma inteligência cultivada e duma sensibilidade vasta, ela foi a primeira entre nós a sentir a precisão de buscar os caminhos mais contemporâneos de expressão artística, de que vivíamos totalmente divorciados, banzando num tradicionalismo acadêmico que já não correspondia mais a nenhuma realidade brasileira nem internacional."

Em 1929 abria em São Paulo, sua quarta individual. Depois de fechar sua exposição, até 1932, Anita Malfatti dedicou-se ao ensino escolar. Retomou suas aulas na Escola Normal Americana e foi trabalhar também na Escola Normal do Mackenzie College.

Podemos dividir as fases artísticas de Anita Malfatti em três:

  • A primeira seria quando define sua forma expressionista de pintar;
  • A segunda seria a das dúvidas de que caminho seguir na arte
  • Dos 20, 30 e início dos anos 40, quando depois da morte de Mário de Andrade e de sua mãe, Dona Betty, seria transformada numa terceira Anita Malfatti, e recolhida na sua chácara em Diadema. Iria finalmente, em paz consigo mesma "pintar à vontade", "à seu modo". A individual de 1945, prova essa unidade na pintura de Anita Malfatti. A artista estava decidida em seu caminho de paz, na sua reclusão.

"É verdade que eu já não pinto o que pintava há 30 anos. Hoje, faço pura e simplesmente arte popular brasileira. É preciso não confundir:arte popular com folclore… eu pinto aspectos da vida brasileira, aspectos da vida do povo. Procuro retratar os seus costumes, os seus usos, o seu ambiente. Procuro transportá-los vivos para as minhas telas. Interpretar a alma popular (...) eu não pinto nem folclore, nem faço primitivismo. Faço arte popular brasileira."

Em 1964, na cidade de São Paulo, Anita Malfatti morreu, mas deixou um precioso legado para a arte brasileira introduzindo um novo estilo de pintar que, rejeitado a princípio, foi aos poucos adotado por toda uma geração de artistas. Marco divisório entre o antigo e o novo, a obra de Anita Malfatti constitui uma inestimável contribuição para a cultura brasileira.

Anita Malfatti  -  "A Mulher de Cabelos Verdes"
Representações da Artista em Outras Mídias

  • Na minissérie "Um Só Coração" (2004), de Maria Adelaide Amaral na Rede Globo, Anita Malfatti, foi representada pela atriz Betty Gofman.
  • "Anita Malfatti" - documentário - Premio Estímulo de Curta-metragem da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo em 2001 - de Luzia Portinari Greggio.
  • Ilustrou o livro "Cafundó da Infância", de Carlos Lébeis em 1936

Fonte: Wikipédia