Marco Uchôa

MARCO ANTÔNIO UCHÔA
(36 anos)
Jornalista

* Ceará, (1969)
+ São Paulo, SP (23/11/2005)

Marco Uchôa foi um menino pobre, que deixou o Ceará para morar em São Paulo. Fez o colégio na Escola Dom Pedro I, em São Paulo, no bairro de São Miguel Paulista, vendeu balas nas esquinas e freqüentou uma instituição para crianças carentes. No Natal, Uchôa comandava uma ação solidária entre os colegas da TV Globo. Ele recolhia sacolinhas com presentes para quem teve uma infância parecida com a dele. 

Marco Uchôa formou-se nas Faculdades Integradas Alcântara Machado (FIAM). Seu primeiro trabalho foi aos 17 anos, na Folha de São Paulo. Atuou ainda no O Estado de São Paulo e foi colaborador da revista Marie Claire antes de seguir para a televisão.

Ao atuar como jornalista investigativo, Marco Uchôa fez, entre outras reportagens, uma que denunciou a fraude conhecida como "Dossiê Cayman", nas ilhas do Caribe.

Seu livro "Crack, O Caminho das Pedras", da Editora Ática, publicado em 1997, ganhou o Prêmio Jabuti como melhor livro-reportagem.

Na TV Globo, devido à semelhança de nomes, Marco Uchôa era confundido com outro repórter da emissora, Marcos Uchôa, correspondente em Londres, responsável por coberturas como a guerra no Iraque e o Tsunami. Apesar de nomes praticamente idênticos, eles não são parentes próximos.

Morte

Em 2003, Marco Uchôa descobriu ser portador de um agressivo tumor ósseo. Aos 34 anos, casado, pai de um filho e com uma carreira promissora - havia dez anos era repórter do "Fantástico" -, ele teve de parar. Lutou dois anos contra a doença. Suportou a quimioterapia, mais de 20 cirurgias, reaprendeu a andar, usou muletas.

O jornalista Marco Uchôa, morreu às 12:05hs de quarta-feira, dia 23/11/2005, em São Paulo, vítima de Câncer. Marco Uchôa estava internado no Hospital Alemão Oswaldo Cruz (HAOC), em São Paulo, desde o dia 7 de novembro de 2005. Ele estava em tratamento de osteossarcoma (tumor maligno nos ossos) há dois anos. Mais recentemente, o paciente enfrentava um quadro de metástases múltiplas ósseas e pulmonares.

Marco Uchôa trabalhava havia mais de dez anos na TV Globo, como repórter do "Fantástico". O jornalista, que além do programa "Fantástico", colaborava com "Jornal Nacional", "Globo Repórter" e com o canal Globo News. Marco Uchôa deixou mulher e um filho de 7 anos.

Quando morreu, aos 36 anos, deixou uma legião de amigos e um testemunho de rara coragem, na forma de um diário no qual registrou momentos de perplexidade, resgatou a importância do afeto dos que o cercavam e externou as coisas que queria que o filho soubesse. "É um diário feito com a alma de alguém que soube viver e morrer com idêntica dignidade", diz Anna Costa, mulher do jornalista por 15 anos. Leia, a seguir, trechos condensados dessa longa despedida, selecionados por Anna, sua esposa:

Primavera de 2003

Toca o celular. É Ana Holanda, mais uma amiga de Anna, minha mulher. Em menos de cinco minutos, o programa de domingo estava definido. É sempre assim. Mulheres são rápidas. Ana Holanda e a irmã, Patrícia, passariam o dia conosco. Muitas risadas, causos… Minha perna esquerda continuava do mesmo jeito. Dores constantes a ponto de impedir certos movimentos, principalmente os de abertura. Quase quatro meses de remédios, fisioterapia, acupuntura e poucos sinais de melhora. A preocupação era maior pelo fato de eu não poder mais correr, atividade física intensa que havia caído nas minhas graças. Nos últimos meses, as corridas nas manhãs de domingo e os treinos no meio de semana haviam sido suspensos.

Quando as irmãs foram embora, decidimos descansar. Não existe descanso sem água, sem banho. Victor, meu filho de 6 anos, foi primeiro, com todos os brinquedos possíveis, para dentro da banheira de nossa suíte. Só saiu dali para ficar enrolado numa toalha no meio de minha cama, de olho grudado no Fantástico. Chegou a minha vez. Abri o chuveiro, coloquei o pé direito dentro da banheira, mas o esquerdo, aos poucos, escorregou no tapete do banheiro. Aquela típica abertura de perna provocou muita dor e um grito seco imediato, estridente. Anna veio correndo da cozinha. Ao me ver naquele estado, chorando de dor, intimou: "Vamos para o hospital agora. Chega de sentir dor". Lembro a frase dela: "Não é possível você não melhorar depois de tantos remédios e todas essas sessões de fisioterapia e acupuntura. Tem alguma coisa errada…"

Seguimos para o pronto-socorro de um hospital, o mais próximo de casa. Victor levou brinquedos e a animação típica de um garoto. Ficha feita. O relógio marcava 10 horas da noite em ponto. O Fantástico seguia, com um cenário em homenagem à primavera. Vinte minutos depois, fui recebido com um sorriso por um médico plantonista japonês que, de bate-pronto, sacou a frase: "Você não é aquele repórter?" - "Sim, sou."

Ele pediu um raio X e sugeriu uma injeção para aliviar a dor. Quando a imagem foi revelada, tudo mudou. Não esqueço o espanto do médico e sua cara de preocupado com o que via: o osso esquerdo do púbis esfarelado. Qualquer um percebia por aquela imagem que havia um problema sério. Chamei Anna e não consegui disfarçar o impacto da notícia.

O médico, gaguejando, falava em inflamação ou em tumor no osso. Quando essa palavra foi pronunciada, fiz questão de traduzir - "Câncer?"

Ele preferiu pedir uma tomografia computadorizada. Os olhos de Anna, uma mulher forte e segura, estavam marejados. O pequeno Victor estava assustado. Fui obrigado a conter a emoção para não assustá-lo ainda mais. Fiquei sem chão por um tempo. Pensava como seria dali em diante. Como ficaria a minha Anna? E a educação do Victor, o meu bem maior? Minha vida, como seria? Naquela noite, Anna e eu ficamos grudados no meio da nossa enorme cama, como não fazíamos há tempos.

A Quimioterapia

A clínica de oncologia fica bem em frente ao Parque do Ibirapuera. Olho para as pessoas correndo e meu coração fica apertado. Será que um dia vou poder voltar a me exercitar desse jeito? Anna e eu entramos com o pé direito na clínica. Afinal, ali eu receberia as medicações que iriam combater o tumor e me devolver a saúde aos poucos, a cada novo frasco de soro com as substâncias químicas.

No consultório, o doutor Sérgio Petrilli, oncologista e diretor do GRAC , abriu a bolsa de couro e sacou vários artigos da internet e textos de simpósios de que seu grupo participara. Saí de lá confiante de que havia feito uma excelente escolha. Era uma sexta-feira e o tratamento já tinha data certa para começar: segunda-feira, dia 29 de setembro de 2003…

Outro Acidente

Outubro de 2003 - Minha mãe decidiu me acompanhar no tratamento. Fiquei feliz. Anna assumiu o volante. Ao fazer uma curva para a direita, olhei para trás e vi uma cena marcante. Minha mãe estava estranha. Passava mal. Fria, suada, com o rosto transformado.

Anna não teve dúvidas. Algo de errado com a saúde da Dona Sefisa, mulher forte, valente, que enfrentou inúmeras dificuldades para criar dois filhos na cidade grande. Tentei tranqüilizá-la, enquanto Anna se dirigia para o hospital mais próximo… Emergência. Minha mãe tivera um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Não acreditei no que vi. Era uma carga pesada demais para nós. Por outro lado, pensei, isso poderia ter acontecido na casa dela. Teria sido muito pior, pois não estaríamos por perto… Uma frase me perseguia: "Não é possível! Não é possível! Não é possível!" Era.

O AVC atingiu um trecho grande do cérebro. Ela foi submetida a uma cirurgia para diminuir a pressão craniana. Foi direto para a UTI e passou pela semiintensiva até chegar a um quarto. Foram 21 dias de internação. Nauseado por causa das sessões de quimioterapia que começavam a dominar meu corpo, consegui visitá-la apenas duas vezes. Fiquei assustado com o que vi. Uma mulher pálida, careca, às voltas com o fantasma das seqüelas provocadas pelo AVC. Mexia pouco o braço direito. Falava com dificuldades. Não andava. Ela precisaria de acompanhamento permanente dali em diante. Home Care 24 horas, e na minha casa. Um time de enfermeiras para ficar com ela, ajudar no banho, dar os medicamentos… Foi duro acreditar que a rotina daquela casa sempre alegre e tranqüila havia se transformado tanto.

A Cirurgia

11 de janeiro de 2004. Mãos ao lado da maca e uma faixa apertada no pulso. A idéia era impedir que o paciente tentasse retirar o incômodo tubo que lhe garantia a respiração. Um homem preso a fios, eletrodos e máquinas para indicar o seu real estado de saúde. Os números eram acompanhados com atenção por um exército de homens e mulheres vestidos com uniforme azul na sala central de controle.

Enfermeiros, auxiliares, médicos da UTI do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Por mais que tentasse, eu não conseguia me mexer. Efeito das 14 horas de anestesia para a cirurgia que extirpara o tumor e colocara uma prótese em minha bacia. Conseguia, no máximo, mover os olhos. Deitado, a única visão possível era o respiro do ar-condicionado. Pelo reflexo no alumínio, lá no alto do teto, acompanhava o entra-e-sai. Foram quase dois dias nesse cenário. Por mais que tentem humanizar a UTI , a passagem por ela sempre deixa marcas profundas. Nem sempre no corpo, mas quase sempre na memória.

A primeira cena no quarto 1001: Anna colocara um cartaz na varanda: "Parabéns! Mais uma etapa vencida". Minha sogra, Venir, espalhara balões pelo quarto. Meu pequeno Victor trazia um desenho nas mãos - rabiscos coloridos sugeriam um passeio que fizemos à Praia do Espelho, na Bahia, um dos meus recantos preferidos. O quarto aos poucos foi humanizado. Numa mesa de canto, chocolates, flores, livros, CD s, porta-retratos. A idéia era trazer um pouco da minha casa para aquele lugar de parede bege e zero de charme.

Os Amigos Redescobertos

Sou obrigado a confessar: nunca fui muito preocupado com as amizades. Por vezes, Anna dizia: "Os meus amigos são seus amigos. Mas onde estão os seus, as pessoas conquistadas por você?" Silêncio... Na hora de quantificar os meus, faltavam nomes. A mão não enchia. Era como se tivesse sido reprovado por não ter sido capaz, durante todo esse tempo, de mobilizar pessoas. Elas estavam sempre em torno de Anna, por causa de sua dedicação, sinceridade, simpatia, amizade pura e simples. Eu, no caso, vinha no pacote.

Hoje eu encaro a amizade como um troféu. Ganha quem se dedica, quem está atento, quem faz por merecer. A maior prova de amizade que tive foi na véspera de ser operado. Ela veio numa caixa grande e colorida. Por volta das 16 horas, Jennifer Skipp, Karina Dorigo e Márcia Dal Prete, todas amigas do "Fantástico", entraram no quarto com ela. Ao abri-la, me deparei com a maior demonstração de carinho que já tive na vida. Bilhetes, recados, mensagens, desenhos feitos pelos meus amigos da TV. Profissionais de várias áreas com a mesma idéia: me dar um abraço de boa sorte antes da cirurgia.

Chorei como nunca. Antes, eu não conseguia fazer uma lista dos amigos. Hoje falta papel para encher o nome de tantas pessoas que surgiram durante essa caminhada. Uma caminhada que é só minha, mas acompanhada por vários olhares. Sou eternamente grato a todos…

Corpo Estranho

Quase um atleta. Era assim que me sentia antes do diagnóstico. Tinha uma vida agitada, horários confusos, irregulares, e o esporte combinava com tudo isso. Quando o médico fechou o diagnóstico de câncer, porém, o Marco Uchôa esportista não existia mais. Meus passos agora eram lentos e curtos. Eu fazia força e sentia dores para levantar a perna esquerda. Olhava pela janela do meu quarto, via aquele sol lindo e eu completamente limitado por causa da perna. Sem corrida, sem esportes… Só com dor.

Hoje me olhei no espelho. Fiquei nu. Não me reconheci mais. Magro. Pernas e coxas finas. Mudei rápido, em poucos meses. A massa muscular vigorosa não havia deixado vestígio em meu corpo. É assim quando essa doença bate na sua porta. Você precisa estar preparado para muitas mudanças. A primeira delas é na cabeça. Depois, seguem pelo corpo, pela alma. Cada passo, cada contração muscular é motivo para comemorar.

Preto, liso, brilhante, volumoso e farto. Esse era o meu cabelo, para agonia de meus amigos calvos. Para manter o corte, precisava apará-lo a cada 15 dias. Segundo Júlio Crepaldi, meu cabeleireiro, um mestre na arte dos cortes e penteados, "meu cabelo crescia como grama". Naquela manhã, ele estava curto, mas era necessário deixá-lo menor ainda. Na verdade, era preciso raspá-lo. Júlio não compreendeu no primeiro momento. Expliquei-lhe que a tal dor na perna era sinal de um tumor e que, com a quimioterapia, minha cabeleira perdera o sentido… Júlio não quis raspar, mas o deixou curtíssimo. Eu sabia que passaria pelo dia fatídico em que o ralo seria entupido pelos pequenos fios. Cai tudo mesmo. Não tem perdão.

Chuva em Família

Sexta-feira, abril de 2004. Anna e Victor estão com cara de chuva. Imagino ser por conta dessa batalha. Tantos dias de luta, idas e vindas ao hospital. A família toda se desgasta para segurar essa barra. Mas a doença também aproxima, e hoje sinto-me mais íntimo de todos. Um desafio como esse, às vezes, até faz chover dentro de nós. Vem aí um dilúvio.

Sentimento: aperto, receio, medo de voltar para o hospital.
Determinação: meditar e ter mais pensamentos positivos.
Vontade: abraçar meu filho, pegá-lo no colo.
Certeza: sairei vitorioso dessa luta. Faltam meses, mas vou saber esperar.
Necessidade: me alimentar melhor, comer mais e com maior freqüência para ficar mais forte.
Susto: quantidade de remédios aqui ao lado do criado mudo.
Desejo: voltar a ter autonomia.
Promessa: ser mais suave com tudo. Entender o tempo de cada um. Ser mais seguro e sereno ao mesmo tempo.
Amigos: Tê-los cada vez mais próximos.

Dia dos Pais

Outubro de 2005. Festa na escola do Victor. Animação, pizza… e eu de cadeira de rodas. Como o colégio é grande, foi a melhor solução. Abraços, beijos e fotos com a minha cria ao lado. Eu estava feliz. Depois da festinha, passei a tarde deitado. Senti dor. Apaguei com o potente Dimorf, remédio contra a dor à base de morfina. Acordei domingo com os pés formigando e uma sensação estranha de perda da força. Eu, que tinha esperança de voltar ao trabalho, não poderia imaginar que, naquele domingo, iniciaria mais uma batalha. Mais uma cirurgia…

Tirei as alianças, beijei minha Anna e pedi para avisar meus chefes na empresa. "Força, amor!" Saí do quarto com esta frase dela. Não suportava o vento gelado do corredor rumo ao centro cirúrgico. Cenas que aprendi a não gostar. Eu havia tido um recidiva do câncer, o tumor estava agora pressionando a vértebra T5 e eu corria risco de perder os movimentos das pernas. Acordei tranqüilo na UTI . Soube que tudo havia dado certo e que, aos poucos, recuperaria os movimentos. Que batalha!

Anna Costa, Marco Uchôa e Victor

A Última Carta

Domingo, 14 de novembro de 2005

Querido Victor,

Canário, por que canário? Ora, porque você é aquele garoto que chega da escola sujo, ensopado. Adoro esse cheirinho de moleque feliz. Victor, saiba que seu pai veio cumprir uma missão. Acho que chegou a hora de me despedir e virar uma estrela. Estarei sempre lá em cima no céu, pronto para te olhar, te ouvir e te apoiar em tudo. SEMPRE!

Sempre que se sentir aflito, indeciso, olhe para o alto. Outro jeito de me ver é se olhar no espelho. Estarei refletido nele. Você é uma parte de mim. Fruto do lindo amor meu e de sua mãe, a mulher que mais me ensinou nesta vida.

Conheci o amor verdadeiro com ela, conheci o mundo com ela. Anna é o meu brilhante! O amor de minha vida. Victor, torço para que você encontre uma Anna em sua vida. Quero, de verdade, que você seja feliz, não importa o jeito.

Lembro de você bagunçando em cima da cama. Morria de rir. Meu Tuco, Victor, Tutu, Canário: serei sempre seu, meu filho. Queria deixar mais e mais para você, mas acho que os valores mais importantes desta vida são: Seja correto com as pessoas. Faça com os outros o que gostaria que fizessem com você. Respeite sua mente, seus desejos, seu corpo. Acima de tudo, seja feliz, uma sensação ótima. Senti isso várias vezes ao lado de sua mãe.

 Filho, esses olhos puxados são seus, são nossos. São a nossa marca. Em você ficaram lindos! Você é belo por dentro, Victor. Sentirá saudades, claro, mas quando esse sentimento bom aparecer, lembre-se das nossas brincadeiras, do "canário", do "escatológico".

Papai encontrou uma princesa na terra. Com ela aprendeu a viver. Fizemos você com amor. Não se esqueça um só segundo de que, de onde estiver, eu estarei te olhando. E te abraçando, meu moleque querido.

Seja um homem de bem, feliz!

Seu sempre pai, papito,

Marco Uchôa