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Veiga Valle

JOSÉ JOAQUIM DA VEIGA VALLE
(67 anos)
Escultor, Dourador, Pintor e Político

* Arraial da Meia Ponte (Atual Pirenópolis), GO (09/09/1806)
+ Goiás (Cidade de Goiás ou Goiás Velho), GO (29/01/1874)

José Joaquim da Veiga Valle, em geral conhecido simplesmente por Veiga Valle, foi um artista plástico pouco comentado nos livros de História da Arte do Brasil, cujo trabalho de apurado estilo artístico merece, sem dúvida, maior atenção por parte dos estudiosos da arte produzida nesse país tão rico e vasto de diversidade e sincretismo cultural que é o Brasil.

Nascido em Arraial da Meia Ponte, atualmente Pirenópolis, GO, de família simples, mas de projeção local (seu pai exercia várias atividades políticas, religiosas e comerciais), quase nada se sabe sobre sua infância e adolescência. Não frequentou ensino formal e acredita-se que tenha começado a conceber sua obra no fértil ambiente artístico e religioso em que vivia.

José Joaquim da Veiga Valle nos legou grande acervo de esculturas, hoje catalogadas em torno de trezentas peças, produzidas em meio ao sertão do cerrado, isolado das principais escolas artísticas do país.

Seguindo as inúmeras atividades do pai, em 1833 entrou para a Irmandade do Santíssimo Sacramento e, em 1837, foi eleito vereador da cidade. Mudou-se para a cidade de Goiás em 1841, a convite do então presidente da Província, José Rodrigues Jardim, com a função de dourar os altares da matriz da capital. Hospedado na casa do presidente, Veiga Valle casou-se no mesmo ano com a filha desse, Joaquina Porfíria Jardim, com quem teve oito filhos.

Em Goiás iniciou os trabalhos que mais tarde o fariam ser reconhecido como maior escultor da região. Trabalhava quase sempre com madeira cedro, que é macia, cheirosa e de grande durabilidade. Suas esculturas eram feitas em partes separadas, que depois eram encaixadas. A delicadeza de detalhes, proporções reais e impressão de movimento das esculturas são algumas das características de sua obra.

Esculpiu uma enorme variedade de santos, a maioria encomendada pelos moradores da cidade. Os mais populares eram as Madonas (representações de Nossa Senhora), Meninos Jesus, Santo Antônio e São José de Botas, padroeiro dos bandeirantes e desbravadores. Fiel seguidor da estética cristã, fez apenas uma obra profana: um nu artístico, inacabado, que mede 25 cm. Produziu de 1820 a 1873, provavelmente com ajuda de seu filho Henrique, única pessoa a quem transmitiu seus conhecimentos.

"A obra de Veiga Valle é singular por seus aspectos formais e históricos. Suas imagens são eruditas e aparentemente anacrônicas. No século XIX, a província de Goiás não passa de mera 'expressão geográfica' sem peso maior na cultura do Império. Veiga Valle é a sua manifestação isolada: uma arte que recebe a marca do extemporâneo quando referida a um modelo abstrato de estilo."
(Heliana Angotti Salgueiro "A Singularidade da Obra de Veiga Valle" - 1983, p. 25)

Suas imagens podem ser reconhecidas facilmente: a característica de seu estilo, formas e cores é singular, inconfundível, escapa à arte anônima serial que existe na estatuária religiosa. São marcadas por soluções muito particulares, tanto da técnica - desenho, cromatismo, acabamento - quanto da expressividade - fisionomia e gestualidade.

Veiga Valle é o mais destacado artista que viveu em Goiás no século XIX. Há registros de outros artistas, como o pintor Alferes Bento José de Souza, de 1782, anterior a Veiga Valle; passou dezessete anos no local, confeccionando retábulos para igrejas. Há registro de que, no fim do século XIX, o pintor André Antônio da Conceição foi à Cidade de Goiás para pintar o forro da Igreja São Francisco de Paula. Benevenuto Sardinha da Costa foi outro pintor que executou painéis documentados no Museu das Bandeiras, na mesma cidade. Dentre esses artistas, o que maior destaque obteve foi Cândido de Cássia Oliveira, professor de desenho de ornatos e figuras no Liceu de Goiás, em 1872, escultor e profundo admirador da obra de Veiga Valle.

Santa Bárbara - Acervo do Museu de Arte Sacra da Igreja da Boa Morte, Cidade de Goiás
Influências Artísticas

Pouco se sabe a respeito da iniciação artística de Veiga Valle, mas o mais provável é que tenha recebido ensinamentos do padre Manuel Amâncio da Luz. Não há relatos que comprovem os dotes artísticos do padre, e o que se nota é que o aluno superou seu mestre.

Em uma época em que o interior do Brasil encontrava-se totalmente isolado das principais correntes e produções culturais, o acesso aos meios de comunicação era bastante difícil. Desta feita, eram raros os livros, gravuras, desenhos e pinturas em Goiás.

Há registros de que Veiga Valle nunca saiu do interior do Estado, desta forma as fontes de sua inspiração artística foram, sobretudo, as imagens sacras que chegavam de Portugal, do Rio de Janeiro ou da Bahia, em direção às igrejas e oratórios particulares. Haviam também outros ornamentos, como altos-relevos na prataria portuguesa, baiana e carioca que enfeitavam as igrejas, identificados como folhas de acanto, conchas, guirlandas, treliças ou guilhochês, elementos presentes também em algumas de suas obras.

Outras fontes podem ser as porcelanas importadas, os bordados dos paramentos religiosos e da indumentária litúrgica vindas de Portugal, França e Itália, e também os livros de preces e devoção, as Bíblias ilustradas. Desta forma, mantinha contato com a iconografia religiosa, as simbologias e códigos canônicos. Como se pode notar, era vasta sua fonte de inspiração, somando-se a isso um gênio de intensa criatividade, apurado rigor técnico e refinado senso estético.

O professor Bruno Correia Lima, em seu livro "O Genial Santeiro em Goiás", diz que:

"a par de sua extraordinária sensibilidade artística, deve ter sofrido influência também das produções neoclássicas do ambiente em que viveu (…). Provavelmente apoiou-se nos santos existentes, pelo menos quanto à indumentária e simbolismo, além da natural obediência que os artistas devem ter à iconografia cristã."
(
Elder Camargo de Passos "Veiga Valle: Seu Ciclo Criativo" - 
1997, p. 117)

"Veiga Valle é artista do Império. Não obstante, sua escultura é ambivalente: pautando-se por padrões estilísticos do Neoclassicismo, é moderna; prolongando a codificação barroca, está aparentemente deslocada. Singular porque trabalha isolado, desprovido do apoio de prática anterior e local, é escultor de vulto: dominando dois estilos, não raro os combina numa única imagem ( … ) Erudita, não é extemporânea a obra de Veiga Valle. Não é por ser realizada em província estagnada e distante que o seu barroco pode receber o apelativo tardio."
(Heliana Angotti Salgueiro "A Singularidade da Obra de Veiga Valle - 1983, p. 19)

São Miguel Arcanjo - Madeira policromada. Acervo do Museu de Arte Sacra da Igreja da Boa Morte, Cidade de Goiás.
A Técnica

A execução de imagens pode ser dividida em três etapas distintas: primeiro, a estrutura ou o suporte, que são a madeira e o entalhe; segundo, uma base intermediária entre a madeira e a capa de douração e pintura: o aparelho; e por fim a douração, a policromia e o esgrafiado. A separação entre os ofícios de entalhador, dourador e pintor foi menos efetiva no Brasil do que em Portugal, pois como se pode perceber, Veiga Valle ocupava-se de todas as etapas do processo.

Ele esculpia, principalmente, em madeira cedro, pois a considerava macia, cheirosa e de grande durabilidade, mas utilizou também o bálsamo e o jatobá. A madeira era abatida na lua minguante, época em que a seiva encontra-se recolhida na raiz, para evitar a incidência de caruncho. Depois os troncos permaneciam em repouso por cerca de oito meses na sombra, quando eram cortados em tamanhos diversos e então passavam por um processo rudimentar de imunização, cozidos em tacho de cobre, em água misturada a vários vegetais, com o objetivo de retirar as resinas restantes e proporcionar maior dilatação dos poros da madeira, tornando-a mais resistente ao clima árido do cerrado. Após a secagem dos cepos, iniciava-se o processo escultórico.

As suas imagens não se constituíam, na sua maioria, de peças inteiriças: os membros eram esculpidos separadamente e depois encaixados. Após o término do talhe, a peça era preparada para a carnação e a policromia. As falhas na madeira eram cobertas com camadas de gesso e cola à base de clara de ovo ou boldo africano. Após a fase de aplicação e polimento do aparelho, colocava-se o "bolo armênio" ou "francês": óxido de ferro hidratado. Todas as misturas, tintas, colas e banhos eram preparados pelo artista.

Fazia o douramento com folhetas de ouro e prata importados da Alemanha ou vindas do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. A douração e a prateação eram feitas pelo mesmo processo, em que as folhas eram espanejadas com uma broxa fina. Após a secagem fazia-se a brunidura, depois envernizava-se para evitar a oxidação. A fixação das folhetas era feita nos mantos, véus e camisolas, porém algumas de suas peças são totalmente douradas.

A próxima etapa é a pintura, ou policromia, por cima da douração. A pigmentação de sua paleta se compunha de materiais naturais, em maior parte; em menores quantidades, importada da Europa.

Da vegetação - urucum, ruibarbo, açafrão, resinas, etc. - extraía cores como amarelo e vermelho, um pouco de azul e muito raramente o verde. Os matizes eram obtidos pela mistura dos pigmentos. Alguns animais eram usados como fonte de corantes, como um inseto chamado cochonilha, que dá um tom escarlate brilhante, ou moluscos de tom sépia e púrpura. Os corantes minerais mais empregados foram o óxido de ferro, de cor vermelho-escuro, popularmente conhecido como sangue-de-boi, ou terra de cor amarela, violeta e vermelha. Alguns tons mais raros na natureza, como matizes de verde e azul, eram trazidas do Rio de Janeiro: tintas importadas da Europa, uma vez que não haviam, ainda, indústrias no país.

Após a aplicação da tinta na imagem dourada, segue-se para a ornamentação: o esgrafiado ou estofamento. Os desenhos são feitos com o esgrafito, um tipo de estilete, retirando a camada externa de tinta seca e deixando em evidência a camada interna, o "pão-de-ouro" brunido, revelando os ornamentos feitos do contraste entre a pigmentação e o dourado.

No esgrafiado o artista compõe desenhos de traços finos regulares e contínuos, caracteristicamente rococó, onde se observam os buquês de flores, medalhões ovais, volutas, formas de conchas, folhas de acanto, palmas. Há ornamentos planos e em alto relevo, que remetem a trabalhos de ourivesaria, com fineza de execução.

A carnação é o nome dado ao tom de pele que se colocava nas partes descobertas do corpo, como o rosto, braços, mãos, pés e pernas. Os olhos, em uma fase mais avançada, passaram a ser feitos de vidro. A última etapa era o envernizamento. Os vernizes eram feitos de resinas, gomas ou bálsamos em álcool, terebintina ou óleo de linhaça.

São Joaquim com bastão - Madeira policromada
O Estilo

Podemos observar a influência Veiga Valle em outros artistas. Mas, ao que tudo consta, não teve alunos em sua oficina: ele trabalhava sozinho, ou provavelmente com a ajuda de seu filho Henrique.

Sua obra caracteriza-se, sobretudo, pela produção de imagens sacras, que eram produzidas por encomenda da igreja e de particulares. O artista atendia não só ao público local como também recebia encomendas de outros estados. Os santos que esculpia variavam de acordo com o gosto de cada cliente. As imagens de maior destaque eram as madonas, que eram representadas por Nossa Senhora da ConceiçãoNossa Senhora D’AbadiaNossa Senhora dos RemédiosNossa Senhora das DoresNossa Senhora da PenhaNossa Senhora do Bom PartoNossa Senhora das MercêsNossa Senhora da GuiaNossa Senhora do CarmoNossa Senhora do Rosário, etc.

O acervo levantado por Elder Passos comprova que as imagens de Nossa Senhora da ConceiçãoNossa Senhora D’Abadia eram as de maior devoção popular. Segundo o autor, a madona é, por si, um tema barroco por excelência. Os santos são personagens históricos ou legendários, enquanto que a virgem é um ser celestial, de transcendência pura, elevando a devoção ao nível da comunhão com o transcendente, com Deus.

Esse é o traço mais marcante da produção denominada barroca: a supremacia da igreja católica, haja vista que a arte barroca se caracteriza sobretudo pelo tema religioso. Por meio da riqueza e profusão de cores e imagens presentes nas igrejas, atraíam-se os fiéis em busca da salvação. Quando se fala de arte barroca no Brasil estamos, necessariamente, remetendo à arte sacra.

Com uma breve descrição das imagens de Nossa Senhora, observem-se algumas das principais características de Veiga Valle. No ápice da imagem, véu esvoaçante decorado com flores, estrelas, pontos, etc, na beirada dos mantos, como acabamento aparece uma tarja dourada com cunhos de baixo-relevo, emoldurando cabelos castanhos repartidos ao meio. Sobre os ombros, um xale ornado em listras de várias cores e dourado. As túnicas que cobrem as peças prendem-se à cintura com faixas ou cintos decorados com motivos florais variados. Os espaços vazios são preenchidos com linhas horizontais, verticais, transversais, côncavas, de acordo com a dobra do tecido e sua inventividade.

Conforme o tamanho da peça, eram variáveis a decoração e os ornamentos. As peças maiores apresentam túnica com larga faixa desenhada em alto relevo feito de gesso com douramentos. As mangas do vestuário embaixo da túnica são visíveis entre o cotovelo e o punho, de cores e desenhos contrastantes com a tonalidade suave e homogênea da túnica, geralmente em tom rosa-forte com xadrez dourado. As mangas da túnica têm contorno verde metálico. Vendo-se a peça de frente, observa-se a frente e o verso dos mantos, com o verso em tom mais forte criando contraste e dando destaque à beleza do conjunto. A imagem está pisando, geralmente, numa esfera de cor azul-marinho, com aplicações de cabeças de querubins com asas.

O seu período de atividade artística compreendeu a época entre 1820 e 1873. Veiga Valle teve que interromper a produção de suas obras em decorrência da doença que o abalou, vindo a falecer alguns meses depois, aos 68 anos, em 29 de janeiro de 1874, na Cidade de Goiás.

Nas comemorações do centenário de morte, sua sepultura foi transferida para o Museu de Arte Sacra da Boa Morte, onde está exposta boa parte de sua obra.

Imaginário erudito, profundo conhecedor de anatomia, iconografia, valores espaciais, entalhadura, douração, pintura, esgrafiado e dos segredos dos materiais, se o artista não frequentou escolas, isso não o fez menos genial, e a expressão de sua sensibilidade artística é fato comprovado pelo legado de sua obra.

Até o ano de 1940 a arte de Veiga Valle permaneceu no anonimato, e as suas obras eram conhecidas apenas nas igrejas e oratórios em Goiás e Mato Grosso, onde muitas vezes seus proprietários ignoravam o valor artístico de suas peças. Foi quando apareceu em Goiás o artista plástico João José Rescala, que conheceu o trabalho do escultor e ficou admirado pela qualidade das peças. Teve então a iniciativa de organizar a primeira exposição da obra de Veiga Valle, realizando uma catalogação de grande parte do acervo. A partir de então a arte de Veiga Valle começou a se difundir entre os historiadores de arte, realizaram-se exposições e foram editados artigos em revistas e livros, alguns dos quais são utilizados como fonte deste trabalho.

O que se pode observar é que as pesquisas sobre a imaginária brasileira ainda estão incompletas. Há com certeza um rico patrimônio artístico a ser ainda descoberto e estudado, para que se possa ter um panorama cada vez mais abrangente da variedade artística e cultural existente do Brasil.

Fonte: Biapó e Wikipédia