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Edith Gaertner

EDITH GAERTNER
(85 anos)
Atriz

☼ Blumenau, SC (22/03/1882)
┼ Blumenal, SC (15/09/1967)

Edith Gaertner foi uma atriz que nasceu em nasceu em Blumenau, SC,  no dia 22/03/1882. Era filha do cônsul da Alemanha Victor Gaertner, sobrinho-neto do químico e filósofo Hermann Bruno Otto Blumenau, fundador da cidade de Blumenau, e da fundadora do teatro da cidade. Edith Gaertner era a caçula de oito irmãos.

Seu monumento foi levantado no Horto do Museu da Família Colonial, antiga casa de Edith Gaertner, e moldado pelo escultor Miguel Barba. Foi inaugurado em 15/09/1973, na presença de autoridades locais. 

Em Blumenau, SC, existe o Cemitério dos Gatos dentro de um Horto Florestal que pertenceu a uma atriz que amava gatos e se chamava Edith Gaertner.

Com temperamento independente, aos 20 anos, depois da morte dos pais, viajou sozinha. Chegou a trabalhar como governanta de uma família em uma fazenda no Uruguai, mas foi na Argentina que começou a realizar seu sonho: Ser atriz.

Foi na Argentina que conheceu Elenora Duse, uma atriz alemã, que foi sua musa inspiradora.

Edith Gaertner foi para a Alemanha, onde cursou a Academia de Arte Dramática em Berlim. Percorreu as principais cidades da Europa trabalhando em peças nos mais renomados palcos de teatro, com peças de Goethe, Schiller, Molière e Shakespeare. A crítica, contam historiadores, a recebia muito bem: Sua dicção e mímica eram sempre elogiados.

O pós-guerra, porém, trouxe dificuldades à Alemanha. Quando, em 1924, Edith Gaertner recebeu a notícia de que seus dois irmãos solteiros estavam muito doentes, viu a deixa para abandonar a carreira artística e retornar ao Brasil.

Vida de Clausura

De volta a Blumenau, voltou à viver na propriedade da família Gaertner, construída no centro histórico da cidade, e que hoje abriga o Museu da Família Colonial e o horto. Nessa época Edith Gaertner tinha pouco mais de 40 anos e, para surpresa de todos, mudou radicalmente seu estilo de vida, contou a professora Sueli Petry, diretora do Patrimônio Histórico de Blumenau

"Solteira, Edith nunca teve filhos. Não trabalhou mais com teatro, vivia enclausurada. Para passar o tempo tinha gatos, e toda a parte afetiva era para eles. Tinha seis, sete gatos de uma vez só, e à medida que os gatos foram morrendo, ela os enterrava nos fundos da casa”, diz Sueli.

Ela voltou à Alemanha somente em 1928 e permaneceu lá por mais de um ano. Nesta época, a Alemanha vivia os efeitos do pós Primeira Guerra Mundial. Quando retornou ao Brasil, Edith Gaertner modificou radicalmente seus hábitos e estilo de vida. Do constante e assíduo contato com o público, preferiu refugiar-se no silêncio da sua propriedade, entre livros, animais e o verde do parque nos fundos da casa, e foi assim até o final de sua vida.

A ameaça de perder parte de seu patrimônio, um dos mais expressivos referenciais da colonização alemã, para dar lugar a uma nova rua, fizeram-na tomar uma atitude: Doou para o município uma área de 1.775 m² . A doação foi feita sob a condição de se manter a área tal como a deixara, garantindo que ninguém a perturbasse em seu retiro enquanto vivesse, e que após sua morte este patrimônio continuaria a ser mantido.


A residência, o horto e outras benfeitorias foram incorporadas à Fundação Cultural de Blumenau, transformadas no Museu da Família Colonial e Parque Botânico Edith Gaertner.

Edith Gaertner deixou registro fotográfico das flores que alegravam seu belo jardim e dos gatos, seus fiéis companheiros. Ela tinha grande afeto pelos felinos, que ao morrerem eram enterrados com funeral e cortejo fúnebre. Os nomes escritos nas lápides de concreto são de gatos que viveram no século passado, entre o começo dos anos 1920 e o fim dos anos 1960: Pepito, Mirko, Bum, Peterle, Musch, Schnurr, Sittah, Putze e Mirl.

O inusitado Cemitério de Gatos faz parte da história de Blumenau, no Vale do Itajaí, mas também ajuda a contar a história de sua dona, que poucos conhecem: Edith Gaertner, uma ex-atriz que viveu a fama e a clausura na mesma intensidade.

Além do Parque Botânico que leva seu nome, há também a Sala de Teatro Edith Gaertner, dentro da Fundação Cultural de Blumenau, e parte de sua história é contada no longa-metragem "Outra Memória", dirigido por Chico Faganello.

Edith Gaertner faleceu em 15/09/1967, aos 85 anos.

Ritual de Enterro

Foram mais de 50 gatos enterrados ali, garante Sueli Petry, mas apenas nove lápides permaneceram: "Ela fazia uma ritualística no enterro desses gatos", disse Sueli Petry. Ainda em vida, Edith Gaertner doou o terreno para a prefeitura. Quando morreu, em 1967, o então diretor da Biblioteca Pública, José Ferreira da Silva, transformou o imóvel em museu.

"Em respeito a Edith, foi mantido o cemitério de gatos. Foi Ferreira da Silva quem colocou as lápides com os nomezinhos deles", explicou Sueli Petry, lembrando que as esculturas foram baseadas em imagens dos animais, mantidas até hoje pela prefeitura.

Há quem diga que este é o único cemitério de gatos do mundo. Sueli Petry não confirma, mas também não nega: "Eu desconheço outro. Mas é uma  atração a mais para os visitantes do museu!".

O cemitério de gatos pode ser visitado no Museu da Família Colonial, que fica na Alameda Duque de Caxias, 64. As visitações ocorrem de terça a domingo, das 10 às 16h.

Fonte: Gato Preto e G1 
Indicação: Miguel Sampaio
#famososquepartiram #edithgaertner

Lotta de Macedo Soares

MARIA CARLOTA COSTALLAT DE MACEDO SOARES
(57 anos)
Paisagista, Urbanista e Aristocrata

* Paris, França (16/03/1910)
+ New York, Estados Unidos (25/09/1967)

Maria Carlota Costallat de Macedo Soares foi uma paisagista, urbanista autodidata e aristocrata brasileira, à convite de Carlos Lacerda foi umas das responsáveis pelo projeto do Parque do Flamengo, localizado na cidade do Rio de Janeiro, o maior aterro urbano do mundo.

Uma personagem marcante da vida carioca nos anos 50 e 60, que mudou a paisagem do Rio de Janeiro, desconhecida das novas gerações, e de um monumento da poesia americana, Elizabeth Bishop, uma mulher muito discreta.

Nasceu em Paris, no dia 16/03/1910, seu pai José Eduardo, então primeiro-tenente da Marinha baseado na Europa, sua mãe Adélia de Carvalho Costallat, irmã do famoso jornalista e cronista carioca Benjamin Costallat, teve mais uma filha em Paris, Maria Elvira, conhecida por Marieta.

José Eduardo deixou a armada em 1912, voltando ao Brasil com sua família, chegando ao Rio de Janeiro fundou o jornal O Imparcial, precursor do Diário Carioca.

No fim de 1915, José Eduardo, comprou a Fazenda Samambaia, incluindo a Casa Grande, vinda de meados do século XVIII e demais benfeitorias. Lotta, aos 5 anos, chegou onde o destino teria reservado o melhor para sua vida: Samambaia.

Com O Imparcial, José Eduardo, insuflava o pensamento crítico, desde a campanha civilista com os discursos inflamados de Ruy Barbosa ao surto modernista do início dos anos 20 e a dura oposição ao governo de Epitácio Pessoa e suas fraudes.

A vitória contumaz de Arthur Bernardes, fruto da "eleição a bico de pena", do "voto de cabresto" e dos "currais eleitorais" envolvia o pleito em aura de suspeição, abalando a credibilidade e deflagrando a Revolta Tenentista em 05/07/1922, tendo como marco o episódio dos "Dezoito do Forte".

Assumindo o governo em 15/11/1922, Arthur Bernardes, decreta estado de sítio no país, O Imparcial é fechado definitivamente, José Eduardo é preso em sua propriedade em Maricá e transferido com outros presos políticos para instalações na Ilha Rasa.

Com o auxílio de sua brilhante imaginação e de seu irmão José Roberto, José Eduardo consegue fugir do seu cárcere e do país, exilando-se com sua família na Europa.

Lotta, então com 13 anos, passou a frequentar um dos melhores colégios internos da Suíça até os seus 18 anos, em 1928, quando voltou com a família ao Brasil.

Adélia de Carvalho Costallat e José Eduardo se separam em 1929, na partilha dos bens a Fazenda da Samambaia fica com Adélia.

Dois anos de governo de Getúlio Vargas bastaram para transformar o ídolo de José Eduardo em um ditador imperdoável. Na oposição mais uma vez o Diário Carioca é empastelado por forças getulistas.

Temendo por sua vida e pelo confisco de seus bens pelo governo, José Eduardo transferiu todas as suas propriedades, incluindo as terras de Maricá, Saquarema e o próprio Diário Carioca, para Horácio de Carvalho Junior, por quem tinha grande afeto, admiração e confiança. Horácio passou a ser o administrador dos negócios, enquanto José Eduardo se dedicava ao jornalismo e a política, tornando-se senador da República em 1934.

No princípio da década de 40, Lotta residiu em New York, onde faz cursos no Museu de Arte Contemporânea.

Lotta e Marieta com isso ficaram sem a herança oriunda da família Macedo Soares. Lotta não concordou com a transferência do controle dos bens para Horácio, ficou magoada com o pai, mas respeitou sua decisão. Marieta ao contrário, inconformada, lutou na justiça pela anulação da doação e brigou com Lotta por não acompanhá-la na empreitada.

Em 1940, Adélia vendeu a Casa Grande da Fazenda Samambaia e as terras circunjacentes para a família Leite Garcia, reservando no entanto cerca de um milhão de metros quadrados da propriedade que foram transmitidos em partes iguais as suas filhas Lotta e Marieta.

A Casa Grande da Fazenda Samambaia, parada obrigatória de tropeiros no caminho do ouro no século XVIII, foi restaurada em 1942 pelo arquiteto Wladimir Alves de Souza e atualmente é sede do Instituto Samambaia de Ciência Ambiental (ISCA).

Lotta, herdeira de fazendas e imóveis no Estado do Rio de Janeiro, tinha ideias mais interessantes com que ocupar o tempo. No Brasil, donas de casa milionárias, quando resolvem trabalhar, costumam montar butiques ou se dedicar a obras filantrópicas.

Lotta realmente teve uma ideia. Uma delas: convenceu seu amigo Carlos Lacerda, recém-eleito governador do Estado da Guanabara em 1960, a fazer no Aterro do Flamengo o mais espetacular parque urbano do lado de baixo do Equador. "Deve ser um Central Park para os cariocas", dizia Lotta. Para tocar o projeto, sugeriu seu próprio nome.

Quando, nas eleições seguintes, Carlos Lacerda perdeu o governo, Lotta retirou-se da construção do Aterro do Flamengo.

Lotta não era mesmo uma milionária comum. Ela dividia o mesmo teto com Elizabeth Bishop, uma das maiores poetas americanas do século 20. Durante quinze dos quase vinte anos em que Elizabeth Bishop permaneceu no Brasil, elas mantiveram uma relação marcada pela paixão e pela tragédia.

Elizabeth Bishop

Antes mesmo de enfrentar a tarefa de erguer o Parque do Flamengo, Lotta já agitava a vida do Rio de Janeiro. Era a ovelha negra de uma família tradicional que em plenos anos dourados só usava calças compridas e camisas masculinas. Era culta e simpática, conhecia as pessoas certas e tinha energia. À frente do parque, cuja execução se arrastou por anos a fio, tornou-se um galo de briga, capaz de passar pitos inesquecíveis em Carlos Lacerda e ir ao presidente Castelo Branco, para afirmar suas ideias.

Lotta de Macedo SoaresElizabeth Bishop nunca fizeram segredo de sua união. Lotta aparece em qualquer perfil biográfico da poeta, morta em 1979. Há diálogos inteiros travados entre as duas protagonistas na intimidade. Trata-se de "Uma Arte", coletânea de mais de 300 cartas pessoais escritas pela poeta no decorrer da vida. "Uma Arte" também é um livro surpreendente.

Robert Lowell (1917-1977), um dos grandes poetas americanos, disse certa vez que, quando as cartas de Elizabeth Bishop fossem publicadas, ela seria considerada não apenas uma escritora excepcional mas também uma das mais prolíficas de seu tempo. Tinha razão. As cartas de Elizabeth Bishop são deliciosas de ler. Nelas, a poeta de versos econômicos e personalidade introvertida dá lugar a uma escritora cativante, cheia de imaginação. Sob sua visão, fatos rotineiros ganham vida. As cartas mais reveladoras são as enviadas à sua médica de New York, Anny Baumann. E os quinze anos que Elizabeth Bishop passou no Brasil são os cenários das passagens mais marcantes de sua correspondência.

Das cartas emerge uma Elizabeth Bishop muito mais comunicativa e franca do que ela jamais foi em seus poemas. A poesia de Elizabeth Bishop, feita de pequenos e sutis observações do cotidiano, é muito econômica nas palavras e rigorosa nas formas, uma poesia contida, às vezes ríspida.

No trato pessoal, Elizabeth Bishop não era diferente. Basta lembrar que, em seus quinze anos de Brasil, se conta nos dedos de uma mão os amigos que fez. De modo geral, para os amigos de Lotta, sua companheira era taxada de chata e antipática.

Nas cartas, Elizabeth Bishop deixa aparecer a pessoa por trás da poeta. Quando escreve a Marianne Moore, transparece sua angústia por ser praticante órfã - seu pai morreu quando ela tinha 8 meses e pouco depois sua mãe foi internada num hospício. A vida inteira andou em busca de substitutos para o pai e a mãe.

Em sua correspondência, comenta livremente o romance com Lotta. Descreve também os anos que passou em Ouro Preto, antes e depois da morte da companheira, de onde saiu convencida de que jamais deveria ter posto os pés no Brasil.

Baixinha e Atrevida

As passagens no entanto, são aquelas que mostram Lotta em contato com políticos e burocratas na construção do Parque do Flamengo. Ela não era arquiteta ou paisagista e nem sequer tinha diploma universitário. Mas era uma mulher viajada, lida, educada, culta e de bom gosto. Seduzido, Carlos Lacerda entusiasmou-se pela ideia do parque e criou para ela o cargo - não remunerado - de "Assessora Especial do Departamento de Parques e Jardins".

Os engenheiros e arquitetos do órgão, desde o início, a viam como um corpo estranho, uma baixinha atrevida. Sua primeira providência: cortar o número de pistas para carros, de quatro para duas. Segunda: chamar uma comissão de notáveis, como o arquiteto Afonso Reidy e o paisagista Roberto Burle Marx, para criar o parque, engavetando as ideias dos chefões do departamento. O tempo fechou.

Ao defender suas ideias, entre elas a instalação dos imensos postes que até hoje estão no parque, Lotta conseguiu brigar tanto com os burocratas quanto com a maioria dos notáveis. Sua discussão com Burle Marx, outro temperamental de carteirinha, iniciada por causa de um playground infantil, é engraçadíssima.

A cada dificuldade que surgia no projeto do parque, Lotta recorria ao governador Carlos Lacerda, que àquela altura da vida política do país, com a Revolução de 1964 iminente, tinha pouco tempo para a amiga. Ela não tinha dúvidas: cruzava os portões do Palácio Laranjeiras e brandia o dedo na direção do governador. Nessas conversas, ouviam-se insultos.

O governador Carlos Lacerda aguentava porque acreditava nas ideias de Lotta, e também achava que ela era um tipo inteligente e interessante. Certa vez, com o parque quase pronto, a Marinha cismou de instalar ali uma estátua do Almirante Barroso, o herói da Batalha do Riachuelo, na Guerra do Paraguai, alegando que ela se encontrava muito longe do mar, no centro da cidade.

"Por que diabos Barroso sentiria saudades do mar se ele foi herói de uma batalha fluvial?", devolveu Lotta, encerrando o assunto. Uma tirada típica de uma personagem que mudou a paisagem do Rio de Janeiro, e esquecida pela História.

Morte

Todas essas questões políticas em que estava envolvida e mais o afastamento de sua companheira Elizabeth Bishop, que a esta altura já estava em New York, levaram-na à depressão. Elizabeth Bishop era uma das poetisas mais famosas da época.

Lotta e Elisabeth viveram juntas de 1951 a 1965.

Em 1967, quando já separadas, Lotta resolveu viajar para New York a fim de encontrar Elizabeth Bishop. No mesmo dia em que chegou, Elizabeth Bishop encontrou-a caída na cozinha, com um vidro de antidepressivo nas mãos. Lotta entrou em coma, falecendo poucos dias depois.

No Cinema

A vida de Lotta de Macedo Soares com Elizabeth Bishop e seu envolvimento com o governo de Carlos Lacerda, bem como seu apoio ao Golpe Militar de 1964, são o tema do filme de Bruno Barreto "Flores Raras". No papel de Lotta está atriz Glória Pires.

Fonte: Wikipédia,  Instituto Lotta, Veja, 29/11/1995, 1420 e Super Interessante, 09/2001, 168

Cego Aderaldo

ADERALDO FERREIRA DE ARAÚJO
(89 anos)
Violeiro e Poeta Popular

* Crato, CE (24/06/1878)
+ Fortaleza, CE (29/06/1967)

Lendário como o Padre Cícero, como Frei Damião, Lampião, ou em termos mais recentes, tão famoso e querido quanto Luiz Gonzaga, o Cego Aderaldo vagueou por todos esses rincões ora cinza, outra, ora verdejantes do Nordeste brasileiro. Com sua rabeca melodiosa e os versos a brotar fáceis do seu estro, tornou-se uma referência regional, para ganhar depois notoriedade em todo o país.

Aderaldo Ferreira de Araújo não nasceu cego. Veio ao mundo com a luz dos seus olhos em 24 de junho de 1878, numa ruazinha suburbana da cidade do Crato. Muitos o consideravam filho de Quixadá, onde se radicou desde os primeiros meses de vida.

"Tenho aqui minha morada
como residência e pouso
Vivo alegre e cheio de vida
Que não me falta conforto
Penso que só saio daqui
Um dia depois de morto"

Versava para esclarecer a sua relação com Quixadá, onde o pai Joaquim Rufino Araújo, alfaiate de profissão, chegou naqueles finais do Século XIX com a mulher, Dona Olímpia e três filhos, dos quais Abelardo - o nome verdadeiro do famoso cego - era o caçula. Ninguém o chamaria por todo o sempre de Abelardo, e sim de Aderaldo, tomando a deficiência visual a condição de pré-nome.

Órfão bem cedo, pois tinha poucos anos quando faleceu o pai, vítima de um derrame (congestão, como se dizia outrora) que o deixou inválido por muito tempo, o que levou Aderaldo, com tenra idade, a começar a lutar pela sobrevivência. Foi aprendiz de carpinteiro, auxiliar de ferreiro, trabalhou de um tudo, "só não fui guia de cego", costumava dizer. E cego se tornaria já quando rapaz, aos 24 anos, abruptamente, em plena rua de Quixadá, após ingerir um copo d’água. Trabalhava então como ajudante de uma caldeira, sob alta temperatura. Sentiu uma sede imensa, o que o levou a pedir um copo d’água numa casa próxima. Mal acabara de sorver a água, sentiu uma dor incomensurável na cabeça, uma sensação de aperto sobre os olhos, que pareciam receber uma carga de espinhos. Em minutos, a escuridão absoluta tomou posse dele. A vida seria outra dali em diante. O que fazer, sem a vista? Cansado, adormeceu e no sono sonhou que estava cantando. E foi assim, ao levantar-se, que pela primeira vez Aderaldo recorreu à inspiração poética que guardava no peito, fazendo, em versos, uma prece a São Francisco:

"Ó Santo de Canindé
que Deus te deu cinco chagas
fazei com que este povo
pra mim faça as pagas
uma sucedendo as outras
como o mar soltando vagas"


Milagre do santinho de Canindé, protetor dos pobres e desvalidos, ou fruto da necessidade de arranjar o pão de cada dia sem a luz dos olhos, Aderaldo tomou prontamente a decisão de que não iria estender a mão à caridade, encontrando na sua arte o meio de sensibilizar o povo a oferecer-lhe "as pagas como o mar soltando vagas".

Para felicidade sua, uma moça de Quixadá, sua conhecida, e apiedando-se de sua inesperada cegueira, doou-lhe um cavaquinho, instrumento que, sem ninguém para ensinar, aprendeu a manejar em curto espaço de tempo. Todo o seu talento musical se projetaria a partir daí. Além do cavaquinho, tornou-se exímio tocador de violino (rabeca), de bandolim e quantos outros instrumentos de corda lhe caíssem às mãos.

Começaram as cantorias. Garante o pesquisador João Eudes Costa, autor de um cuidadoso estudo sobre Cego Aderaldo, que sua primeira estrofe, em som abafado, teria sido esta:

"Ah! Se o passado voltasse
todo cheio de ternura
eu ainda tendo vista
saía da vida escura.
Como o passado não volta
aumenta a minha tristeza
só conheço o abandono
necessidade e pobreza"

O desabafo de quem ainda não dimensionara toda a grandeza do seu próprio valor que iria, pouco a pouco, se afirmando nos desafios emocionantes nas feiras ou nos terreiros das fazendas, provocando lágrimas e gargalhadas dos circundantes, sempre em número crescente.

De acordo com o mesmo depoente, Aderaldo teria lhe confessado que se sentia feliz após uma cantoria, quando recebia, além de alguns niqueis  muitas prendas como milho, feijão, queijo, farinha, rapadura, essas coisas típicas do sertão, que lhe garantiam o seu sustento e de sua mãe viúva. Tinha na mãe um esteio espiritual, um objetivo de vida. Cantava e versejava pensando nela, para dar-lhe o que precisava em sua solidão na velhice.

Um dia, quando retornava risonho de um desafio de viola, com o alforje prenhe de mantimentos, deparou-se com a mãezinha querida agonizando. Morreria momentos depois, coberta pelas lágrimas derramadas dos olhos opacos do filho generoso.

A pobreza era de tal monta, que - contava Cego Aderaldo - não dispunha de vintém para fazer o sepultamento da velhinha, que teve o corpo estirado sobre uma esteira de palha, enquanto ele saía transido de dor, em busca de meios para dar um enterro cristão à mãe que idolatrava.

Soube que, no único hotel de Quixadá naquele tempo, estavam hospedados uns paroaras, como se chamavam os nordestinos que retornavam da Amazônia endinheirados. Os homens bebiam em grande algazarra, deles se aproximando, Cego Aderaldo para pedir uma ajuda destinada ao enterro da mãe. Um dos homens, muito embriagado, disse que só ganha dinheiro quem trabalha e zombou do pedinte humilhado. Mesmo assim, entre lágrimas, Aderaldo disse que diria uns versos para justificar a caridade e improvisou na hora:

"Ó Deus,
lá do alto do céu,
de sua celeste cidade,
ouça-me cantar a força
devido à necessidade:
aqui chorando e cantando
e mãe na eternidade"

E continuou soluçante:

"Perdoe-me minha mãe querida
não é por minha vontade
são as torturas da vida
que vêm com tanta maldade
chorarei meus sentimentos
de vê-la na eternidade"

Os paroaras, mesmo bêbados, não esconderam a emoção e lhe deram 20 mil réis, dinheiro bastante para as despesas com o sepultamento.


Rumo a Amazônia

A seca de 1915 provocou o esvaziamento dos sertões do Nordeste, em especial os do Ceará. Milhares e milhares de homens, mulheres e crianças embarcaram pelo porto de Fortaleza com destino a Manaus e daí para as impenetráveis florestas amazônicas. Cego Aderaldo foi um dos cearenses a ir embora, traduzindo em versos, aos que o escutam a bordo do vapor do Loide, as razões da sua partida:

"Canto para distrair
este meu curto poema
vou fugindo da miséria
que é este o penoso tema
desta terra de Alencar
deste berço de Iracema.
Fugi com medo da seca
Do pesadelo voraz
Que alarmou todo o sertão
Da cidade aos arraiás"

Não foi das mais longas a permanência de Aderaldo no Amazonas, voltando carregado pela saudade de sua terra sofrida que não tinha olhos para ver, mas um imenso coração para sentir. De sua passagem pelo "inferno verde", restou um dueto que disputou com um cantador índio por nome Azubrin.

Encontro Histórico

Em 15 de fevereiro de 1924 aconteceu em Juazeiro um encontro memorável reunindo algumas figuras marcantes do Nordeste: Padre Cícero Romão Batista, Drº Floro Bartolomeu, Virgulino Ferreira, o Lampião, e Cego Aderaldo.

Lampião quis ouvir a cantoria do célebre violeiro e Aderaldo não se fez de rogado. Puxou a rabeca, tirou a nota mais apropriada e soltou o verbo:

"Existem três coisas
que se admira no sertão:
o cantar de Aderaldo,
a coragem de Lampião
e as cousas prodigiosas do Padre Cícero Romão"

O temível cangaceiro envaideceu-se, abraçou Cego Aderaldo ofertando-lhe, na ocasião, umas moedas de vintém e uma pistola de estimação que carregava na cintura. Consta que Lampião, tirando as vezes de cantador, improvisou uns versos para Aderaldo:

"Aderaldo seu pedido
pra mim foi muito belo
se você não fosse cego
lhe dava um 'papo-amarelo'
tome esta pistola velha
que matou Antonio Castelo"

A pistola e uma das moedas são entesouradas pelo pesquisador João Eudes, de Quixadá, que as recebeu de Aderaldo alguns anos antes de sua morte.

Cego Aderaldo e a Orquestra de Crianças
Uma Orquestra em Cinema

Aderaldo não casou, mas se tornou pai adotivo de, nada menos, que 26 crianças pobres do interior nordestino, a quem cuidou com carinho e devoção paternos, educando-os e encaminhando-os na vida. Com vários deles, que possuíam ouvido para música, formou uma orquestra de cordas, que animava as suas célebres apresentações por diferentes rincões do Nordeste.

Já consagrado, não apenas nessa região, mas em todo o País, o Cego Aderaldo conseguiu fazer um vasto número de amigos. Gente importante no Brasil como o ex-Governador Adhemar de Barros, de São Paulo, que lhe presenteou com um projetor de cinema. Este projetor e a orquestra constituíam atrações nas noitadas de Aderaldo por toda parte. O mais curioso: o filme era mudo, mas Aderaldo fazia a narração dos episódios a partir do conhecimento prévio da história.

Um dos filmes que os sertanejos mais aplaudiam era a "Paixão de Cristo", um velho celuloide silencioso que, por anos seguidos, durante a Semana Santa, atraía centenas de espectadores. Num vilarejo miserável, certa feita, assistindo à fita, o cangaceiro João Vinte e Dois revoltou-se com as torturas impostas pelos judeus a Jesus Cristo. Sacou a garrucha e sapecou um tiro certeiro num dos soldados, vazando a tela improvisada.

Outra curiosa passagem da vida de Aderaldo aconteceu quando da visita de Adhemar de Barros a Quixadá. Candidato à Presidência da República, o governador paulista fez questão de receber a visita do "seu amigo Aderaldo", a quem já presenteara com o tal projetor. Aderaldo animou o encontro com suas cantorias, regadas a muita cerveja. Lá pelas tantas, sentindo que começava a ficar tonto com a bebida, chamou o guia e lhe disse em voz alta os versos que arrancaram a risada do Governador e demais convivas:

"Menino vamos s’imbora
que a cidade está em jogo
é o guia puxando o cego
e o cego puxando fogo"

Um dos 26 filhos adotivos de Aderaldo, Geraldo Rodrigues, guarda um repertório de histórias do pai, cuja memória venera fortemente. "Foi um ótimo pai, educador de todos os filhos que lhe obedeciam e lhe devotavam o maior respeito, dele recebendo em troca o maior carinho", recorda Geraldo Rodrigues.

Monumento a Cego Aderaldo em Quixada, Ceará  
Com Rogaciano Leite e Silvio Caldas

Cego Aderaldo, em suas andanças pelo Brasil, ia difundindo cultura e preservando as tradições da gente nordestina. Nessas viagens pressentia o despontar dos talentos que o sertão escondia, a exemplo do grande poeta e cantador Rogaciano Leite, que anos depois viria morar em Fortaleza, onde constituiu família, formou-se, publicou vários livros e militou na imprensa.

Rogaciano Leite andejou com Aderaldo por muitas vilas e povoados do Nordeste, antes de se tornar um nome consagrado das letras nacionais. O poeta e jornalista pernambucano tornara-se amigo de Sílvio Caldas, o célebre cantor romântico apelidado de "caboclinho querido do Brasil", sendo dele parceiro na bela canção "Cabelos Cor de Prata", que o cantor incluiu em seu repertório.

Um dia Rogaciano Leite levou Cego Aderaldo para conhecer Sílvio Caldas, que deixou gravado este depoimento formidável, em poder de Eudes Costa e com o qual, inclusive, ilustrou um extraordinário programa radiofônico sobre a vida e a obra do menestrel cearense, divulgado em emissora de Quixadá.

Nesse depoimento, Sílvio Caldas conta que teve ocasião de assistir a uma cantoria entre Cego Aderaldo e Rogaciano Leite em determinado lugarejo. Com a palavra o saudoso cantor de "Deusa da Minha Rua":

A feira estava animada, o povo em redor dos violeiros, vibrando a cada desafio. Rogaciano Leite, jovem e bonito, empolgado com a presença de muitas cabrochas atraentes na platéia, achou à certa altura de fazer uma provocação com o parceiro, dizendo mais ou menos assim:

Tô cantando com este velho
este velho que não dá mais nada
este velho todo enferrujado
já devia estar na cama deitado...

Os jovens, mais as mocinhas, gostaram da tirada e cobriram de aplausos as palavras de Rogaciano, mas Aderaldo tinha a resposta na ponta da língua:

Andei procurando um besta
e de tanto procurar um besta
encontrei este rapaz
que nem serve pra ser besta
porque é besta demais.

Cego Aderaldo liquidara ali mais um parceiro de viola, segundo o depoimento de Sílvio Caldas.

Com Os Anjos No Céu

Cego Aderaldo morreu no dia 29 de junho de 1967, aos 89 anos de idade. Partiu pobre como viveu. De herança para o filho Mário, que o acompanhou até o fim dos seus dias, uma casinha num bairro de Fortaleza que lhe fora doada pela grande escritora Rachel de Queiroz, uma das suas mais renomadas admiradoras, e outra em Quixadá. A rabeca, que adquirira no distante ano de 1916 por 200 mil réis, ele doou ainda em vida ao filho Geraldo Rodrigues.

Verdadeiro mito dos sertões, Cego Aderaldo ainda hoje é mote constante dos desafios de violas que se fazem nos pequenos burgos do interior. O cantador Adalberto Ferreira, em uma de suas cantorias, afirmava que "vi o anjo Gabriel há tempo chamado e vi Cego Aderaldo cantando com os anjos lá do céu".

Uma das primeiras homenagens ao genial cantador sertanejo se encontra em forma de estátua, defronte à rodoviária de Quixadá, num trabalho do escultor João Bosco do Vale e por iniciativa de Alberto Porfírio, também cantador, e um dos mais denodados batalhadores pelo resgate da genuína cultura do Nordeste.


Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho

Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.

Um dia, determinei
A sair do Quixadá -
Uma das belas cidades
Do estado do Ceará.
Fui até o Piauí,
Ver os cantores de lá.

Me hospedei na Pimenteira
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior,
No Angico e na Baixinha.
De lá eu tive um convite
Para cantar na Varzinha.

Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
- Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?

Eu lhe disse: - Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo -
Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!

O dono da casa disse:
- Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos -
Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.

Chamando um dos filhos, disse
Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá -
E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.

Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador
E dizendo: - Lá em casa
'Tem um cego cantador
E meu pai mandou dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!

Zé Pretinho respondeu:
- Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!

Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
As cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.

O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram duma só vez,
Todos no primeiro arranco

Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:

Vieram o capitão Duda
Tonheiro, Pedro Galvão,
Augusto Antônio Feitosa
Francisco, Manoel Simão
Senhor José Campineiro
Tadeu e Pedro Aragão.

O José das Cabaceiras
E o senhor Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.

Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.

Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras -
Essas duas eram da igreja
As mais exímias cantoras.

Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Segundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.

Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha -
Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.

Depois, trouxeram o negro,
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.

Ele tirou a viola
De um saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
- Oh, que viola bonita!

Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.

Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
- Meu Deus, que rabeca feia!

Uma disse a Zé Pretinho:
- A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!

E disse o capitão Duda,
Como homem muito sensato:
- Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato -
Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!

Disse mais: - Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta -
Da minha parte, dou dez!

Me disse o capitão Duda:
- Cego você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor -
Nada leva quem apanha!

E nisto as moças disseram:
- Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da Parte dele, deu dez
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.

Então disse Zé Pretinho:
- De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo -
Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo ...

Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse pra mim:
- O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!

Então eu disse: - Seu Zé,
Sei que o senhor tem ciência -
Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!

Zé Pretinho:

- Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho -
Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!

Cego Aderaldo:

- Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação -
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!...
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!

Zé Pretinho:

- Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho -
Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!

Cego Aderaldo:

- Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na saia
Rosas e trovas de amores -
Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!

Zé Pretinho:

- Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus -
O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!

Cego Aderaldo:

- Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim -
Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!

Zé Pretinho:

- Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira,pura -
O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!

Cego Aderaldo:

- Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo -
Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!

Zé Pretinho:

- Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro -
Sai dizendo: - Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!

Cego Aderaldo:

- Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua -
Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!

Zé Pretinho:

- No sertão, peguei
Cego malcriado -
Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!

Cego Aderaldo:

- Negro, és monturo,
Molambo rasgado,
Cachimbo apagado,
Recanto de muro!
Negro sem futuro,
Perna de tição,
Boca de porão,
Beiço de gamela,
Vento de moela,
Moleque ladrão!

Zé Pretinho:

- Vejo a coisa ruim -
O cego está danado!
Cante moderado,
Que não quero assim!
Olhe para mim,
Que sou verdadeiro,
Sou bom companheiro -
Canto sem maldade
E quero a metade,
Cego, do dinheiro!

Cego Aderaldo:

- Nem que o negro seque
A engolideira,
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abeque -
Mas esse moleque
Hoje dá pinote!
Boca de bispote,
Vento de boeiro,
Tu queres dinheiro?
Eu te dou chicote!

Zé Pretinho:

- Cante mais moderno,
Perfeito e bonito,
Como tenho escrito
Cá no meu caderno!
Sou seu subalterno,
Embora estranho -
Creio que apanho
E não dou um caldo...
Lhe peço, Aderaldo,
Que reparta o ganho!

Cego Aderaldo:

- Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo -
Cara de cavalo,
Cabeça de burro!

Zé Pretinho:

- Fale de outro jeito,
Com melhor agrado -
Seja delicado,
Cante mais perfeito!
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero!
Cantemos maneiro,
Com verso capaz -
Façamos a paz
E parto o dinheiro!

Cego Aderaldo:

- Negro careteiro,
Eu te rasgo a giba,
Cara de gariba,
Pajé feiticeiro!
Queres o dinheiro,
Barriga de angu,
Barba de guandu,
Camisa de saia,
Te deixo na praia,
Escovando urubu!

Zé Pretinho:

- Eu vou mudar de toada,
Pra uma que mete medo -
Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!

Cego Aderaldo:

- Zé Preto, esse teu enredo
Te serve de zombaria!
Tu hoje cegas de raiva
E o Diabo será teu guia -
É um dia, é um dedo, é um dado,
É um dado, é um dedo, é um dia!

Zé Pretinho:

- Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu também, da minha parte,
Canto versos aprumado -
É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!

Cego Aderaldo:

- Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!

Zé Pretinho:

- Cego, agora puxa uma
Das tuas belas toadas,
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas -
Quase todo o povo ri,
Só as moças 'tão caladas!

Cego Aderaldo:

- Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta -
Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!

Zé Pretinho:

- Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo -
Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!

Cego Aderaldo:

- Disse uma vez, digo dez -
No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa -
Paca cara pagará,
Quem a paca cara compra!

Zé Pretinho:

- Cego, teu peito é de aço -
Foi bom ferreiro que fez -
Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!

Cego Aderaldo:

- Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima,
Que não lhe caia na cara -
Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!

Zé Pretinho:

- Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já -
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca cacará!

Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse:
- Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juizo,
Que o cego canta sozinho!

Ficou vaiado o pretinho
E eu lhe disse: - Me ouça,
José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!

Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto -
Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!

Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha,
Busquei o negro na sala,
Mas já estava na cozinha -
De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!

- Fim -

Fonte: Blog Coisas Nossas e Peleja de Cego Aderaldo Com Zé Pretinho

Guimarães Rosa

JOÃO GUIMARÃES ROSA
(59 anos)
Escritor, Médico e Diplomata

* Cordisburgo, MG (27/06/1908)
+ Rio de Janeiro, RJ (19/11/1967)

João Guimarães Rosa foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi também médico e diplomata.

Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais que, somados à erudição do autor, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.

Foi o primeiro dos seis filhos de Florduardo Pinto Rosa, "Flor", e de Joanita Francisca Guimarães Rosa, "Chikuitita".

Autodidata, começou ainda criança a estudar diversos idiomas, iniciando pelo francês quando ainda não tinha 7 anos, como se pode verificar neste trecho de entrevista concedido a uma prima, anos mais tarde:

"Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo. Leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado). Entendo alguns dialetos alemães. Estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês. Bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração."

Ainda pequeno, mudou-se para a casa dos avós, em Belo Horizonte, onde concluiu o curso primário. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del-Rei, mas logo retornou a Belo Horizonte, onde se formou. Em 1925, matriculou-se na então Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, com apenas 16 anos.

Em 27 de junho de 1930, casou-se com Lígia Cabral Pena, de apenas 16 anos, com quem teve duas filhas: Vilma e Agnes. Ainda nesse ano se formou e passou a exercer a profissão em Itaguara, então município de Itaúna, MG, onde permaneceu cerca de dois anos. Foi nessa localidade que passou a ter contato com os elementos do sertão que serviram de referência e inspiração a sua obra.

Retornando de Itaguara, Guimarães Rosa serviu como médico voluntário da Força Pública, atual Polícia Militar, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, indo para o setor do Túnel em Passa-Quatro, MG, onde tomou contato com o futuro presidente Juscelino Kubitschek, naquela ocasião o médico-chefe do Hospital de Sangue. Posteriormente, entrou para o quadro da Força Pública, por concurso. Em 1933, foi para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Aprovado em concurso para o Itamaraty, passou alguns anos de sua vida como diplomata na Europa e na América Latina.

No início da carreira diplomática, exerceu, como primeira função no exterior, o cargo de Cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, na Alemanha, de 1938 a 1942. No contexto da Segunda Guerra Mundial, para auxiliar judeus a fugir para o Brasil, emitiu, ao lado da segunda esposa, Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, mais vistos do que as cotas legalmente estipuladas, tendo, por essa ação humanitária e de coragem, ganhado, no pós-Guerra, o reconhecimento do Estado de Israel.Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é a única mulher homenageada no Jardim dos Justos entre as Nações, no Yad Vashem que é o memorial oficial de Israel para lembrar as vitimas judaicas do Holocausto.

Guimarães Rosa e sua esposa Aracy de Carvalho

No Brasil, em sua segunda candidatura para a Academia Brasileira de Letras, foi eleito por unanimidade em 1963. Temendo ser tomado por uma forte emoção, adiou a cerimônia de posse por quatro anos. Em seu discurso, quando enfim decidiu assumir a cadeira da Academia, em 1967, chegou a afirmar, em tom de despedida, como se soubesse o que se passaria ao entardecer do domingo seguinte:

"… a gente morre é para provar que viveu!"

Faleceu três dias mais tarde na cidade do Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 1967. Se o laudo médico atestou um infarto, sua morte permanece um mistério inexplicável, sobretudo por estar previamente anunciada em sua obra mais marcante - Grande Sertão: Veredas -, romance qualificado por Guimarães Rosa como uma "autobiografia irracional".

Talvez a explicação esteja na própria travessia simbólica do rio e do sertão de Riobaldo, ou no amor inexplicável por Diadorim, maravilhoso demais e terrível demais, beleza e medo ao mesmo tempo, ser e não-ser, verdade e mentira. Diadorim-Mediador, a alma que se perde na consumação do pacto com a linguagem e a poesia. Riobaldo (Rosa-IO-bardo), o poeta-guerreiro que, em estado de transe, dá à luz obras-primas da literatura universal. Biografia e ficção se fundem e se confundem nas páginas enigmáticas de João Guimarães Rosa, desaparecido prematuramente aos 59 anos de idade, no ápice de sua carreira literária e diplomática.

Contexto Literário

Realismo mágico, regionalismo, liberdades e invenções linguísticas e neologismos são algumas das características fundamentais da literatura de Guimarães Rosa, mas não as suficientes para explicar seu sucesso. Guimarães Rosa prova o quão importante é ter a linguagem a serviço da temática, e vice-versa, uma potencializando a outra. Nesse sentido, o escritor mineiro inaugura uma metamorfose no regionalismo brasileiro que o traria de novo ao centro da ficção brasileira.

Guimarães Rosa também seria incluído no cânone internacional a partir do boom da literatura latino-americano pós-1950. O romance entrara em decadência nos Estados Unidos (onde à época era vitrine da própria arte literária, concorrendo apenas com o cinema), especialmente após a morte de Céline (1951), Thomas Mann (1955), Albert Camus (1960), Hemingway (1961), Faulkner (1962). E, a partir de Cem Anos de solidão (1967), do colombiano Gabriel García Márquez, a ficção latino-americana torna-se a representação de uma vitalidade artística e de uma capacidade de invenção ficcional que pareciam, naquele momento, perdidas para sempre. São desse período os imortais Mario Vargas Llosa (Peru), Carlos Fuentes (México), Julio Cortázar (Argentina), Juan Rulfo (México), Alejo Carpentier (Cuba) e mais recentemente Ángel Rama (Uruguai).

Academia Brasileira de Letras

É o terceiro ocupante da cadeira 2, eleito em 6 de agosto de 1963, na sucessão de João Neves da Fontoura e recebido pelo acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco em 16 de novembro de 1967.

Obras
  • 1936 - Magma
  • 1946 - Sagarana
  • 1947 - Com o Vaqueiro Mariano
  • 1956 - Corpo de Baile
  • 1956 - Grande Sertão: Veredas
  • 1962 - Primeiras Estórias
  • 1964 - Campo Geral
  • 1965 - Noites do Sertão
  • 1967 - Tutaméia - Terceiras Estórias
  • 1969 - Estas Estórias (Póstumo)
  • 1970 - Ave, Palavra (Póstumo)
  • 2011 - Antes das Primeiras Estórias (Póstumo)

Fonte: Wikipédia