Mostrando postagens com marcador Dourador. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Dourador. Mostrar todas as postagens

Mestre Ataíde

MANUEL DA COSTA ATAÍDE
(67 anos)
Militar, Dourador, Pintor, Decorador e Professor de Pintura

* Mariana, MG (18/10/1762)
+ Mariana, MG (02/02/1830)

Manuel da Costa Ataíde, mais conhecido como Mestre Ataíde, foi um militar e celebrado pintor e decorador brasileiro.

Mestre Ataíde foi um importante artista do Barroco-Rococó mineiro e teve uma grande influência sobre os pintores da sua região através de numerosos alunos e seguidores, os quais, até a metade do século XIX, continuaram a fazer uso de seu método de composição, particularmente em trabalhos de perspectiva no teto de igrejas. Documentos da época fazem freqüentemente referências a ele como professor de pintura.

Pouco se sabe sobre sua vida e formação artística e nem todas as suas criações estão documentadas, mas deixou obra considerável, espalhada em várias cidades mineiras. Uma das características da sua expressão era o emprego de cores vivas em inusitadas combinações, que têm sido associadas à exuberante natureza do país. No seu desenho, os anjos, as madonas e os santos apresentam às vezes traços mestiços e por isso é tido como um dos precursores de uma arte genuinamente brasileira.

Foi contemporâneo e parceiro de trabalho de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, cujas estátuas encarnou. Hoje Mestre Ataíde é considerado um dos maiores nomes e um divisor de águas na história da pintura brasileira, e o maior representante da pintura do Brasil colonial.

Detalhe da pintura arquitetônica no teto da Igreja de São Francisco em Ouro Preto
Biografia

Manuel da Costa Ataíde era filho do capitão português Luís da Costa Ataíde, oriundo de Santa Cruz de Alvadia, e de Maria Barbosa de Abreu, de naturalidade possivelmente também portuguesa. Nasceu na freguesia de Mariana, MG, e foi batizado em 18 de outubro de 1762, na Catedral. Sua família era de condição modesta, possuindo um sítio para plantação de milho, uma criação de porcos, alguns escravos e duas casas em Mariana. Teve quatro irmãos: Domingos, tenente e também pintor, Sebastião, Antônio, que veio a ser padre, e Izabel Gualdina.

Quase nada se sabe sobre seus primeiros anos, e o resto de sua biografia documentada nos traz pouca informação. Sabe-se que além de artista foi militar, atingindo os postos de sargento e alferes. Sobre seu aprendizado artístico as lacunas são igualmente amplas. Carlos Del Negro supõe que pode ter sido aluno de João Batista de Figueiredo, e pode ter aprendido também com outros mestres já estabelecidos na região de Minas Gerais, como João Nepomuceno Correia e Castro e Antônio Martins da Silveira. Nada nos autoriza a imaginar, entretanto, que sua formação tenha diferido do costume da época, que fazia iniciar os aprendizes junto a uma corporação de ofícios liderada por um mestre, passando gradualmente das atividades mais elementares até a plena qualificação.

Aprendeu várias especialidades, que veio a dominar com maestria: tornou-se, além de pintor de painéis, dourador e pintor de imagens e talha, desenhista e ilustrador, acabando por ser ele mesmo professor de muitos alunos. Também deve ter recebido instrução em projetos arquitetônicos e em cartografia.

Suas primeiras obras documentadas datam de 1781, quando encarnou duas estátuas de Cristo no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas. Até o final do século XVIII se ocupou principalmente na douração de talha em madeira e na encarnação de estatuária em várias cidades da região. Em 1797 foi nomeado sargento da Companhia de Ordenança do Distrito do Arraial do Bacalhau, em Mariana, MG, e em 1799, foi nomeado alferes da Companhia do Distrito de Mombaça, na mesma localidade.

Na morte do pai, em 1802, renunciou à herança em favor dos irmãos. A partir daí sua carreira ganhou fôlego, mas nunca chegou a fazer fortuna, embora granjeasse largo prestígio ainda em vida. No censo de 1804 declarou que vivia de seu ofício de pintor. Não é claro se em algum tempo veio a receber pagamento por suas funções militares, pois quando foi feito alferes em 1799 um documento registra que não recebia soldo nenhum, mas gozava de "todas as honras, graças e privilégios" que lhe cabiam por seu posto.

Nesta época, possivelmente desde 1808, começou um relacionamento duradouro com a mulata alforriada Maria do Carmo Raimunda da Silva, nascida em 1788, mas viveram em regime de concubinato, jamais casando nem coabitando. Com ela teve seis filhos: Francisco de Assis Pacífico da Conceição (batizado em 1809), Maria do Carmo Neri da Natividade (1812), Sebastião (1814, morto logo após o nascimento), Francisca Rosa de Jesus (batizada em 1815), Justino (batizado em 1818, morto ainda bebê), e Ana Umbelina do Espírito Santo (batizada em 1821).

Em 18 de maio de 1818 dirigiu a Dom João VI uma petição para criar em Mariana, MG, "Uma Aula de Desenho, e Arquitetura Civil e Militar e da Pintura... desejando muito e não tendo maiores possibilidades para saciar os seus próprios desejos de ser útil ao público, e à sua Nação e ainda a todo o Mundo, na instrução, adiantamento e aperfeiçoamento das sobreditas Artes", pois "Ninguém melhor que Vossa Majestade Real sabe quanto é útil a arte do desenho e arquitetura civil, e militar e da pintura: e que haja neste novo Mundo, principalmente nesta Capitania de Minas Gerais, entre a mocidade, homens hábeis de admirável esfera que desejam o estudo e praxe do risco... desterrando assim a ignorância e a viciosidade, e promovendo as Artes, e ciências, e a instrução popular".

O pedido não recebeu nenhuma resposta conhecida, mas em 29 de abril do mesmo ano obteve da Câmara de Mariana um atestado de professor, "tendo dado bastantes provas de que não só é capaz de por em praxe o risco das Cartas Geográficas, dos animais, plantas, aves e outros produtos da Natureza, como explicar e instruir aos que se quiserem aproveitar", o que segundo Sousa Júnior aponta para a formação de um ateliê, mas não uma escola formalizada.

Sua profissão o obrigava a constantes deslocamentos para atender encomendas em várias localidades mineiras, e pôde deixar obra extensa. Teve diversos ajudantes em seus trabalhos, conforme o hábito da época, entre eles aprendizes e escravos. Sua última criação documentada foi a tela intitulada "A Última Ceia", de 1828.

Depois de prolífica carreira, faleceu e foi sepultado em 1830 na Igreja da Irmandade de São Francisco da Penitência, em Mariana, MG, tendo pedido em última vontade a celebração de missas em todas as irmandades de que fora membro.

Deus promete a Abraão multiplicar sua descendência
Painel lateral da capela-mor de São Francisco em Ouro Preto, pintado em estilo de azulejaria
Personalidade

Sabe-se pouco sobre sua vida privada. Era clara sua preocupação com o bem-estar de sua família, provendo-lhe o necessário para o sustento, era generoso com os escravos e aprendizes. Aparentemente era um fiel devoto da Igreja Católica, tendo ingressado em dez irmandades religiosas, e vários documentos atestam sua frequência aos serviços religiosos junto com a família e seus escravos. A despeito disso, nas irmandades que eram ordens terceiras, nunca foi admitido como irmão professo, já que era "indigno", como ele mesmo declarou. Seu estado de "concubinato renitente" o impedia. Não obstante, explicava publicamente seu concubinato e os filhos naturais que tivera, situação comum mas irregular, como "uma fragilidade humana".

Sua carreira militar até onde se sabe parece ter sido mais honorária do que efetiva, e mesmo se não, as artes parecem ter levado uma vantagem natural, pois foi descrito como sendo um "homem calmo, fino, rico de dotes e prestígios", que Fritz Teixeira de Salles chama de "diplomata ameno".

No seu espólio foram arrolados vários bens, que podem ajudar a dar-nos uma ideia de seus hábitos e gostos pessoais, entre eles um pianoforte, uma rabeca, uma violeta, um fagote, uma caixa de tabaco, espada, espingardas e pistolas, um relógio com corrente dourada, um par de fivelas de calção de pedras de topázio cravadas em prata dourada, calção de cetim riscado e colete de lã, chapéu, bengala de junco com cabo de prata, uma chácara, uma casa na Rua Nova, vários utensílios domiciliares como colheres de prata, louças, cadeiras, poltronas, armários, espelhos, bandeja, candeeiro, uma bíblia ilustrada, um dicionário de francês, o tratado "Segredo das Artes", uma luneta, um oratório dourado com cinco imagens. Seu gosto pela música parece evidente, a partir da posse de vários instrumentos e da frequente representação de figuras de músicos em suas pinturas, às vezes pintando orquestras inteiras com uma correta descrição dos instrumentos.

Anjos músicos, detalhe da Assunção de Nossa Senhora
Igreja de São Francisco, Ouro Preto
Obra

Contexto Socio-Cultural

Mestre Ataíde pertenceu à terceira geração de pintores mineiros, florescendo quando o grande ciclo econômico do ouro e dos diamantes chegava a um fim. Aquele ciclo, que no século XVIII enriquecera a capitania das Minas Gerais, foi um dos grandes responsáveis pela formação na região de um ativo centro cultural. Atraiu uma elite ilustrada e amante das artes, que se entretinha com óperas e saraus literários, e patrocinava grande número de artistas, cuja obra em pintura, estatuária, talha dourada, música e arquitetura, até hoje ali permanece como testemunho de um dos momentos mais férteis e privilegiados da arte brasileira de todos os tempos, sendo significativa parte desse acervo Patrimônio da Humanidade.

Naquela elite citada se incluía o clero católico. Realmente, a Igreja Católica foi a maior mecenas da arte durante o Brasil colonial, e isso se prova pela grande quantidade e qualidade das igrejas ricamente decoradas que ainda hoje sobrevive por todo o território do país. Além disso, praticamente monopolizava o ensino e a assistência social. A Igreja, como a história narra, adquiriu um poder central na vida brasileira daqueles tempos, e sua doutrina organizava praticamente toda a vida privada e os costumes coletivos. Um tanto por imposição, e um tanto por inclinação natural, o povo era devoto e expressava isso de formas eloquentes e festivas. Nada mais esperado que o legado cultural daquele período fosse densamente tingido pelas cores da religião.

Nas Minas Gerais a religião tinha também esta força, tanta que, na proibição régia de ali se fundarem conventos e ordens religiosas, o povo tenha reorganizado sua devoção através da criação de inúmeras irmandades leigas ou ordens terceiras. Muitas delas acumularam grandes riquezas com doações e esmolas, e ergueram belos templos para se reunir em culto divino. Na narrativa de Luciano Fernandes, as festas religiosas mineiras "envolviam toda a sociedade, através das irmandades e ordens terceiras, num congraçamento celebrativo ao mesmo tempo místico e secular. Seguidas por religiosos leigos e fiéis de diferentes classes sociais, as procissões.... mais que um ato festivo, eram um ato teatral em que tais irmandades procuravam, antes de tudo, ostentar maior importância ou prestígio".

Essas irmandades também proviam assistência social para seus membros e famílias, e tinham grande influência política. Para elas Mestre Ataíde produziu suas obras. A proibição recém citada produziu um efeito determinante também no colorido caracteristicamente local da arte religiosa mineira: enquanto que no Nordeste, o outro grande centro da arte colonial, onde os conventos e ordens eram permitidos e se multiplicaram, desenvolveu-se "um discurso visual voltado, desde os primeiros momentos da colonização, para a catequese - tanto do gentio, como dos africanos e mesmo dos colonos europeus, entre os quais se queria extirpar de vez as práticas judaizantes dos cristãos-novos -, em Minas Gerais ele teria um caráter devocional, mais afeito às crenças e santos popularizados especialmente através das irmandades leigas".

A doutrina que a Igreja professava na época era um resultado das determinações do Concílio de Trento, onde se organizou a reação católica contra a Reforma Protestante. Foi estabelecido que a religião deveria ganhar mais seguidores e recuperar os perdidos através da ativa propaganda da fé, e o instrumento privilegiado nessa iniciativa foi a arte. Compreendendo o poder de sedução que a arte detinha desde sempre sobre o povo analfabeto, e o amplo espaço para doutrinação que essa sedução abria, a arte da Contra-Reforma buscou ser facilmente acessível ao entendimento das massas. Utilizando programaticamente um rico repertório de formas e símbolos de domínio público, reorganizou esses elementos em uma arte essencialmente didática, ajudando a fundar com isso uma nova sensibilidade e uma nova corrente estética: o Barroco.

Para Luciano Fernandes, "a Contra-Reforma não foi a causa determinante do Barroco, mas sim elemento fundamental que estruturou sua ideologia". Não que a abordagem propagandística fosse nova, ao contrário, fora uma constante na história da arte. A nota dominante aqui foi a ênfase proselitista e a multiplicação dos símbolos como formas de diferenciação partidária. Os protestantes repudiavam o luxo dos templos e o uso das imagens do culto católico, negavam a santidade da Virgem e dos santos. A Contra-Reforma, por seu lado, reforçou o conceito da Imaculada Conceição e reiterou o valor dos seus santos e mártires como intercessores do homem junto a Deus, incentivando a sua representação iconográfica.

O que interessa ao caso de Mestre Ataíde é que sua arte é filha direta desse programa estético e ideológico concebido pelas hierarquias católicas, e o próprio artista o confirma em declaração de 1827 à Mesa da Ordem Terceira do Carmo em Ouro Preto, MG, afirmando que as pinturas no teto serviam para "puxar a atenção e contemplação dos fiéis aos principais mistérios da nossa Religião".

No Brasil, como se disse, o catolicismo era a religião dominante, na verdade, oficial. Portugal permanecera sempre um baluarte católico, e na sua colônia a mesma orientação prevalecia. Desta forma, todas as práticas da Igreja eram vivamente fomentadas pelas instâncias oficiais civis e eclesiásticas. Diz Elisson Morato que "o sucesso da estética barroca na região ibérica, bem como em suas colônias, não se deve apenas à mentalidade religiosa. Portugal e Espanha eram governados por monarquias absolutas, que não tardaram em demonstrar interesse pelo Barroco: uma arte marcada pelo luxo e pela pompa que exaltava, ao máximo, a soberania e a onipotência de Deus... Como os discursos da Igreja e do Estado se imbricavam, a arte barroca foi logo adotada pelos estados absolutistas."

A arte devia ensinar a religião a quem não sabia ler; ao mesmo tempo, era palco de uma fantástica ostentação de riquezas materiais. As igrejas mineiras, como foi uma regra no período Barroco, são repletas de decoração cara, suntuosa e sofisticada, produto de artífices muitas vezes anônimos, mas, como se prova, altamente qualificados. Com exceção de um retrato de Sua Majestade Imperial, de 1824, toda a pintura produzida por Mestre Ataíde é sacra, e tem como objetivo ilustrar a história sagrada e os dogmas fundamentais da fé, suscitando a devoção, e perpetuar na memória dos crentes o código de ética do catolicismo para se levar uma vida aceitável a Deus e obter enfim a salvação eterna para a alma.

Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto
Estilos e Temas

O estilo de Mestre Ataíde está perfeitamente alinhado com as grandes tendências da Europa, de onde vinham todas as referências visuais e conceituais da arte colonial brasileira. Como se disse antes, essas tendências se aglutinavam no que se convencionou chamar de estilo Barroco, na verdade um feixe de tendências muito diversificadas. De qualquer forma, Mestre Ataíde se encaixa na definição mais usual do Barroco: um estilo que prima pelo luxo ostensivo na escolha dos materiais, pela opulência das cores, preferindo os fortes contrastes; pelo dinamismo no desenho e na composição; pelo amor à glória, ao exagero, à retórica e ao drama, e pelo utilitarismo, usualmente com uma ou mais finalidades simbólicas e instrutivas embutidas na rica visualidade de todo o Barroco.

Mestre Ataíde é usualmente mais lembrado pela pintura de tetos de várias igrejas e capelas pela região mineira. Neles pintou Cristo e sua Mãe, os santos e mártires, cenas bíblicas e epifanias gloriosas, e para ambientá-los, criou ricas arquiteturas ilusionísticas e complexas molduras decorativas de guirlandas, rocalhas e coros de anjos, com a graça flamboyant típica do mais puro Rococó. Mas também deixou obras de cavalete e painéis menores, de qualidade mais intimista, às vezes até mais tocantes e próximos da gravidade do Barroco, e não menos valiosos do que seus grandes tetos.

Há, porém, dilemas ainda mal resolvidos na caracterização do estilo de Mestre Ataíde. Na grande escala, os críticos ainda não chegaram a um consenso se o Barroco e o Rococó são estilos distintos ou se este último é apenas a fase final do primeiro. Já se discutiu tanto que a questão parece destinada a ficar para sempre irresolvida, e assim no caso particular de Mestre Ataíde ele é ora descrito como um Barroco, ora como um Rococó.

Disse Adalgisa Campos, sintetizando o problema, que os aspectos formais das obras de Mestre Ataíde revelam:

"A inspiração do artista em seu meio - salientando uma coloração tropical vibrante e figuras humanas mestiças - expressando através da forma rococó uma espiritualidade barroca."

Complementando a ideia, Carla Oliveira, ao analisar a obra mais conhecida de Mestre Ataíde, a "Assunção de Nossa Senhora" na Igreja de São Francisco de Ouro Preto, afirmou que:


"Ali naquele forro abobadado está cristalizado não só o amálgama entre ambos os estilos mas, de forma mais contundente, também transparece visualmente o hibridismo do discurso visual construído durante o século XVIII na Capitania das Minas".

Mas isso tampouco importa para a valorização de Mestre Ataíde como artista, pois é consenso que seu talento era superlativo, independentemente da escola à qual quisermos atribuí-lo. Nas palavras de Lélia Coelho Frota:

"Como a de todo artista de boa envergadura a obra de Ataíde, em última análise, não se deixa prender a rótulos de escola ou de períodos. Transcende-os, é contemporânea de si mesma."

Outra peculiaridade é o atraso cronológico com que as artes brasileiras recebiam as últimas novidades estéticas europeias. Quando Mestre Ataíde iniciou a parte mais importante de sua carreira, só no início do século XIX, tanto Barroco como Rococó já eram formulações obsoletas na Europa, onde então reinavam o Neoclassicismo e o Romantismo. Entretanto, o pintor brasileiro permanecerá fiel àqueles cânones anteriores. No Brasil eram linguagens ainda com todo o poder de fogo, se comunicavam com plenitude com seu público e dele recebiam, como os documentos provam, ótima acolhida. Logo isso começaria a mudar, ao chegarem os primeiros neoclássicos no Rio de Janeiro e Nordeste. Em Minas a mudança só aconteceu mais tarde, depois da morte do Mestre Ataíde, cujo vulto dominou a pintura regional por trinta anos. Mais do que isso, ele encerrou toda uma era na pintura brasileira, sendo o último e maior representante de um brilhante ciclo cultural que durara mais de duzentos anos.

Nossa Senhora do Carmo, o Menino Jesus e São Simão Stock
Museu da Inconfidência
Tradição e Originalidade

Para a concepção de suas composições, também adotou a praxe de seu tempo e lugar. Na impossibilidade de ter contato direto com as grandes obras da pintura europeia, Mestre Ataíde recebeu inspiração principalmente através de reproduções em gravura, de resto largamente usadas por todos artistas coloniais como modelos mais ou menos prontos, um procedimento também adotado pelas academias da Europa desde a Renascença e que era universalmente aceito como válido, sem implicar demérito para o artista como criador.

Na verdade, isso reafirmava a atualidade e importância de uma veneranda tradição cultural que remontava ultimamente à Grécia antiga. Procedente de variados locais e mesmo de épocas distintas, esse corpo de gravuras tinha um perfil estilístico bastante eclético, o que explica a variedade de soluções encontradas na pintura colonial como um todo e mesmo na obra de um mesmo artista, circunstância da qual Mestre Ataíde não fugiu. Vários estudos já documentaram sua apropriação de tais modelos adaptando-os às necessidades e possibilidades de cada local e ao estilo de sua época. Como exemplo, seis painéis da capela-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, executados entre 1803 e 1804, derivam diretamente de gravuras publicadas em Paris por Michel Demarne, entre 1728 e 1730, num compêndio em três volumes intitulado "Histoire Sacreé de La Providence et de la Conduite de Dieu Sur Les Hommes" que acabou sendo conhecido como a "Bíblia de Demarne". A pesquisadora Hannah Levy fez uma descrição do procedimento:

"Note-se que Manuel da Costa Ataíde, em todas estas pinturas, observou fielmente o modelo das gravuras no que concerne à composição geral, à distribuição das luzes e sombras, à posição das figuras e à indumentária. Observe-se, também, que o pintor mineiro, em todas essas obras, simplificou os planos de fundo (paisagem ou arquitetura) em comparação com os das gravuras e que, quase sempre, aproveitou das estampas apenas os grupos principais do tema representado, eliminando figuras ou cenas não diretamente ligadas ao assunto principal. A nosso ver, esta redução das cenas a seus grupos principais foi motivada pelas dimensões do espaço de que dispunha o mestre de Ouro Preto... Não tratou de transformar a composição de Demarne. Pelo contrário: conservou cuidadosamente todos os pormenores das estampas, limitando-se a deixar simplesmente de lado os grupos que não lhe interessavam. É curioso verificar que mesmo mutilando, por assim dizer, a composição original do gravador, Ataíde não introduz senão modificações insignificantes na composição dos grupos que ele aproveita. E nem por isto as suas pinturas deixam de aparecer como composições artisticamente completas... porém, desejamos chamar a atenção para o fato de que o artista mineiro consagra um carinho especial a todos os pormenores pitorescos ou anedóticos encontrados nos modelos e suscetíveis de dar às cenas um caráter mais íntimo e mais diretamente familiar. Assim é que ele reproduz fielmente, por exemplo, na cena da restituição de Sara, o cachorrinho; na cena da refeição dos anjos, o prato fumegante trazido pelo criado, os vasos de vidro, os pratos na mesa, o copo na mão do médico, a forma característica do pé da mesa, etc. Na sua ânsia de dar um aspecto convincente e humano às cenas sagradas, chega a inventar pormenores pitorescos, que não se encontram em Demarne, como, entre outros, o da escarradeira por baixo da cama de Abraão."

É preciso reiterar que em seu tempo a tradição recebida pronta tinha um peso enorme na determinação dos aspectos formais e ideológicos da obra. Nesta colônia, onde não havia um ensino artístico institucionalizado nem aulas de anatomia para artistas, os modelos visuais disponíveis eram essas reproduções de grande circulação. Eram a referência central de trabalho. Além dessas gravuras, diversos estudos feitos sobre a pintura colonial revelam a circulação em Minas Gerais - e no resto do Brasil - de diversos tratados teóricos, que certamente contribuíam para aprofundar os conhecimentos técnicos dos artistas locais.

Segundo Claudina Moresi, os pintores de Minas Gerais tiveram acesso a obras como os estudos de simetria, perspectiva e pintura do poeta e pintor lusitano Filipe Nunes e os tratados "Ciências das Sombras Relativas ao Desenho", "Segredos Necessários Para a Arte da Pintura", "Arte da Pintura", "Segredos Necessários Para os Officios, Artes e Manufacturas", e para outros objetos sobre economia domestica, onde havia importantes referências para o preparo de tintas, vernizes, têmperas e douramentos. Mestre Ataíde possuiu um desses tratados, como consta em seu inventário. Também com certeza estava familiarizado com as lições de um outro tratado, que se tornara canônico, "Perspectiva Pictorum et Architectorum", de Andrea Pozzo, o maior sistematizador da pintura de arquitetura ilusionística, técnica que veio a ser popularíssima na pintura colonial brasileira.

Na discussão sobre estas questões polêmicas de autoria e originalidade, tão caras à crítica contemporânea, vários aspectos devem ser levados em conta: em primeiro, a organização do trabalho, como já se mencionou, era coletiva, num sistema corporativo onde o mestre se encarregava do planejamento geral da composição e execução das partes mais importantes, com vários assistentes ajudando na feitura das partes secundárias, aquisição e preparação de materiais, colocação de andaimes, etc. O mestre, por fim, se necessário fazendo correções e outros acabamentos, aprovava o resultado final. Além disso, o encomendante da obra podia determinar alterações específicas no conjunto. De qualquer modo, artisticamente a obra em último caso era uma criação inteiramente orquestrada pelo mestre, a quem cabia o mérito maior da autoria e da realização. E em se tratando da prática da reprodução de modelos prontos, também a tradição determinava as escolhas principais, mas havia largo espaço para a adaptação e o improviso de novas soluções técnicas e formais; isso sem dúvida confere grande dose de originalidade às pinturas de Mestre Ataíde e seus contemporâneos.

Mestre Ataíde é também celebrado como um mestre original quando se considera que ele conseguiu plasmar em suas imagens, como dizem os críticos, as feições mestiças do povo brasileiro. Da mesma maneira, se aplaude sua rica paleta de cores luminosas em originais combinações, seu desenho preciso mas sensível e fluente, seus corpos humanos de formas cheias e sinuosas, quase lânguidas, os traços humanizados e familiares de seus santos.

Marly Spitali analisou o uso das cores por Mestre Ataíde dizendo que ele é "um sinfonista da cor, não só pela expressão e suntuosidade da mesma mas também pela extraordinária habilidade instrumental, realmente sinfônica, de harmonizar as mais variadas tonalidades e dissonâncias cromáticas". Fez ainda um uso farto e inovador dos tons azuis, até então raros na pintura brasileira. Junto com Bernardo Pires da Silva, Antônio Martins da Silveira e João Batista de Figueiredo, formou a chamada "Escola de Mariana" da pintura colonial brasileira.

Assunção de Nossa Senhora, no teto da igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto
Obras

Num tempo em que a espetacularidade do culto religioso era uma tônica, e todas as artes concorriam para a criação de uma "obra total" sintetizada no templo decorado, onde a celebração ocorria em meio a música e oratória sagrada, e a arquitetura resplandecia em mobílias entalhadas, pratarias, pinturas, estatuária e retábulos dourados, cabe lembrar que Mestre Ataíde não foi apenas pintor, mas grande parte de sua carreira foi empregada nas tarefas de douramento de talha e encarnação de estátuas. Em várias igrejas mineiras o artista deixou sua marca em vários aspectos da decoração, e às vezes chegou a projetar a arquitetura de retábulos e objetos litúrgicos como castiçais e crucifixos. Também foi ilustrador, pintando iluminuras em Livros de Compromisso de irmandades. Nestas outras áreas, sua obra mais afamada foi a encarnação de uma série de estátuas nas Capelas dos Passos do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, que haviam sido esculpidas por outro grande nome do período, Aleijadinho.

Entretanto, é certo que a memória de Mestre Ataíde permanece principalmente ligada à pintura de tetos de igrejas, além de alguns painéis e telas portáteis. A organização básica do conjunto é quase sempre a mesma: a partir do alto das paredes o pintor produz no teto uma pintura que sugere ilusionisticamente a continuidade da arquitetura até que ela se abre para o céu, onde é representada uma epifania. A técnica do ilusionismo arquitetônico para decoração de tetos fora desenvolvida na Itália, sistematizada pelo jesuíta Andrea Pozzo, e por seu impacto visual e poderes evocativos recebeu viva aceitação tanto na Europa como no Brasil colonial. Em Minas Gerais a técnica foi introduzida aparentemente por Antônio Martins da Silveira no forro da capela-mor do Seminário Menor de Mariana, datado de 1782, inaugurando um esquema retomado inúmeras vezes pelos artistas posteriores. Mestre Ataíde melhor exibiu a força do seu gênio na elaboração desse tipo de composição, que exigia grandes capacidades de organizar coerentemente imagens diversificadas em uma escala monumental, além de bons conhecimentos de perspectiva e das leis do escorço.

Porém, a falsa arquitetura recebeu vários tratamentos na mão de Mestre Ataíde, algumas vezes parecendo mais sólida, como na Matriz de Santo Antônio em Itaverava, noutras se dissolvendo numa profusão de festões, guirlandas e rocalhas e outros detalhes puramente decorativos que subvertem a lógica arquitetural, a exemplo da Matriz de Santo Antônio em Santa Bárbara. Geralmente esses elementos estruturantes são povoados por várias figuras secundárias - anjos, santos, mártires, doutores da igreja e outras figuras da história sagrada. O coroamento dessas composições é invariavelmente um grande medalhão centralizado onde é apresentada uma cena divina, usualmente com as figuras de Cristo ou da Virgem dominando a composição.

Também desenvolveu outras soluções. Como no caso do teto de Rosário dos Pretos em Mariana, onde criou uma moldura arquitetural perspectivada mas a cena no medalhão central foi apresentada em visão plana frontal, sem escorço nas figuras. Essa solução era corriqueira em Portugal, onde era chamada de "quadro recolocado", pois tinha apenas e precisamente o efeito de um painel de altar posto no teto, sem explorar os recursos de uma cenografia pictórica mais expansiva e mais ilusória. Em parte isso se devia às dificuldades da criação de um bom escorço, técnica reservada somente aos pintores mais habilidosos, mas também, na opinião de Myriam de Oliveira, seria uma natural continuidade de uma tradição especificamente portuguesa de não escorçar figuras humanas. Esta opção técnica teria possibilitado uma comunicação mais direta com os santos, "retirados assim das alturas celestiais pela terrena sensibilidade da alma portuguesa... pouco afeita aos arroubos místicos."

Segue uma breve descrição de algumas de suas principais obras.


Matriz de Santo Antônio em Santa Bárbara

Possivelmente sua primeira obra no gênero ilusionístico; nela já estabelece seu modelo formal geral, ao qual permaneceu fiel, com poucas variações essenciais, até o fim de sua trajetória. A ilusão arquitetônica se inicia logo na cimalha, onde Mestre Ataíde pintou dois consoles em cada lateral da igreja. Sobre cada um deles se ergue um destacado pedestal e uma coluna, que se ligam ao medalhão central apenas por um concheado que faz as vezes de entablamento. Outros apoios são figuras de atlantes, falsos pilares, púlpitos, formas vegetais e rocalhas. Entre esses suportes há, em cada lateral, um balcão com ornamentação vazada, onde aparecem anjos cantores.

A composição do medalhão central tem uma distribuição de pesos bastante simétrica, representando a Ascensão de Cristo, assistida pelos Doze Apóstolos e a Virgem Maria. No alto a composição é rarefeita, dominada pela figura solitária de Cristo, cuja fisionomia feliz e descontraída contrasta com os olhares atônitos de sua pequena plateia, que se agrupa em círculo compacto logo abaixo em torno de um tipo de pedestal, onde estão impressas as marcas dos pés d'Aquele que acabou de subir aos céus.

Detalhe da Assunção da Virgem, seu painel mais conhecido, na Igreja de São Francisco de Ouro Preto
Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto

Talvez seja sua criação mais afamada. O medalhão central trata da gloriosa Assunção da Virgem, que aparece rodeada por uma orquestra de anjos de todas as idades. Maria tem traços mulatos, como ocorre com vários anjos, e está em atitude de oração assentada num trono de nuvens, rodeada por raios de luz e apoiada em um crescente lunar. A composição é complexa, ricamente colorida e perfeitamente integrada em si mesma e em relação à arquitetura da igreja; nas palavras de Carlos del Negro:

"O tom aconchegante e acariciante da luz que banha toda a composição do medalhão revela um certo grau de intimidade, consonância e vibração dos habitantes desse céu. Todas as figuras da composição só têm autonomia em função do conjunto. A orquestra é um segundo centro da composição pictórica pois determina a distribuição espacial do músicos. Poderíamos dizer que nesse forro ele pintou uma partitura e executou uma pintura. Essa talvez tenha sido a inovação mais importante da pintura de Ataíde: introduzir no universo iconográfico da pintura religiosa a música; entra-se no céu ao som musical de uma orquestra celestial. A transposição da música para o paraíso, revela o valor estético e sagrado que esta linguagem adquiriu no simbolismo religioso das Minas Gerais."

Entretanto, nem tudo era celebração na obra de um artista barroco. Em outras partes do teto Mestre Ataíde pintou admoestações, como os medalhões e faixas com os motos Vanitas Vanitatum e Memento Mori, que significam respectivamente "Vaidade das Vaidades" e "Lembra Que Morrerás", significando que vida na Terra é efêmera e ilusória, uma sofrida peregrinação antes da transcendência e da beatitude eterna. Outros elementos doutrinais que emolduram a jubilosa cena central, a qual ilustra a recompensa pela vida virtuosa, também reforçam a dialética simbólica que a pintura deveria transmitir: uma vela acesa simboliza o tempo que passa; uma ampulheta caída, a morte; um açoite, a necessidade de penitência. Os santos e mártires que fazem parte do conjunto também trazem consigo significados precisos, conforme a vida que levaram e a obra que deixaram. Tais convenções significantes eram na época de domínio público, e não admira que os templos decorados desta forma, com obras narrativas e alegóricas, fossem chamadas de "A Bíblia dos Analfabetos".


Matriz de Santo Antônio em Ouro Branco

A arquitetura ilusionística deste teto é única na obra do Mestre Ataíde, com predomínio de linhas retas em organização um tanto ilógica, complicando a observação da composição a partir de um único ponto de vista. Igualmente é original sua paleta de cores, incomumente clara e diáfana. Destacam-se por entre a arquitetura figuras de vigorosos atlantes e anjos. Balcões em torno, contra florões ornamentais, são ocupados por santos. O rico medalhão do centro mostra um grupo com a Virgem, o Menino Jesus e Santo Antônio de Lisboa. A Virgem, entronizada em nuvens, tem um semblante delicado, sereno e amigável. Ao seu lado está o Menino, em pé sobre uma mesa, diante de um devoto Santo Antônio em reverente genuflexão. As figuras são notáveis pelo seu desenho sensível e formas roliças, e transmitem uma impressão de recolhimento e amorosa placidez. A imagem do Menino Jesus é particularmente graciosa, com o ar travesso das crianças. Anjos ladeiam o grupo central.


Matriz de Santo Antônio em Itaverava

A composição central é emoldurada por púlpitos nos cantos, onde pontificam santos. Púlpitos intermédios são ocupados por anjos músicos. A arquitetura de apoio é sólida e um tanto pesada, o que faz o medalhão central irromper de forma dramática no espaço. O tema do medalhão é A Santíssima Trindade coroando a Virgem Maria. A composição é equilibrada e simétrica. Conforme a iconografia corrente, a figura do Pai é a de um ancião encanecido, o Filho é a imagem de Jesus com sua cruz, e o Espírito Santo voa como uma pomba acima de todos, de onde partem raios de luz que iluminam toda a cena. Ao centro e abaixo, a Virgem recebe uma coroa. Em torno, alguns anjos assistem a cena.


Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em Mariana

A sua última criação neste gênero, datada de 1823. Sobreviveu o contrato firmado entre a irmandade e o artista, onde ficavam explícitas as condições da obra: determinou-se o traçado de um desenho e pintura com "elegante e moderna perspectiva" e "finas tintas de melhor gosto e valentia". No medalhão central da pintura seria representada a Assunção de Nossa Senhora ou "temática que se assentasse melhor" em uma "bonita e valente e espaçosa pintura de Prespectiva [sic?], organizada de corpos de arquitetura, ornatos, varandas, festões, e figurando, o que for mais acertado".

A falsa arquitetura reproduz a da Capela-mor de Santo Antônio de Itaverava com maior simplificação. A Virgem de braços abertos está entronizada sobre nuvens, contra um céu amarelo; seu manto esvoaça, rodeiam-na querubins. Nenhuma das figuras foi escorçada, mas Mestre Ataíde conseguiu uma impressão de perspectiva profunda pelo uso do contraste de cores e luzes. A obra não resultou do agrado da irmandade encomendante, que decidiu pagar-lhe apenas parte do valor acertado. Parece que houve uma disputa pessoal ainda obscura, e o artista recorreu à justiça, mas não teve o retorno esperado. Mais tarde outro artista repintou grosseiramente toda a composição.


Sacristia da Igreja de São Francisco de Assis em Mariana

Dois painéis dividem o espaço deste forro, ambos tratando da Agonia de São Francisco. Em ambos um mesmo modelo, mostrando o santo, já estigmatizado, rodeado de anjos e dos símbolos de sua paixão: o cilício, a ampulheta, o crânio e o livro sagrado. Aqui já estamos em outra categoria de composição; não há arquiteturas ilusionísticas, mas grandes cenas abertas com fundos paisagísticos, onde fica perceptível sua habilidade em transmitir significados pelo simples uso das cores e distribuição de pesos. A figura do santo penitente e sofredor, pintada em cores escuras, contrasta com a claridade do céu e a vivacidade dos anjos que o atendem na sua hora extrema. Lélia Frota detalha a descrição:

"Estes dois painéis no forro da sacristia de São Francisco de Mariana estarão entre os mais belos trabalhos realizados pelo Ataíde. Reúnem de maneira ótima as suas mais evidentes qualidades: a grave expressividade do seu humanismo, concentrada na representação do santo mestiço; o refinamento da composição, centrada nas formas sutilmente oclusas de concha, e conciliando elementos muito díspares; o capricho tonal e um particularíssimo claro-escuro, que exibem uma invenção visual que vai do ar livre da paisagem e do céu até o intimismo mais sombrio do âmago da concha dissolvida em nuvens onde agoniza Francisco. Uma tênue diagonal divide em dois terços o quadro: no inferior, predominam os terras, a tônica é mais densa e dramática. No superior, são azuis, brancos, grises e rosas que ressaltam. E do grupo dos anjos assentados sobre a parte superior da concha nuvem se dirige a Francisco a graça que emana do símbolo triangular da Santíssima Trindade... A composição se apóia no eixo diagonal, tão caro ao Barroco, ondulando-o e ocultando-o sob os recortes irregulares da gruta em rocaille, continuada pelo tronco e ramos desiguais de uma grande árvore."


A Última Ceia

Merece uma nota a sua tela "A Última Ceia", datada de 1828, regularmente citada na bibliografia como uma de suas obras mais importantes. Realizada para o tradicional Colégio do Caraça em Santa Bárbara, nos dizeres de Castro & Souza de Deus é uma obra em que fica explícita sua qualidade de criador original, introduzindo em uma cena altamente patética elementos de descontração e informalidade, dando "um toque de graça profana a uma passagem tão tocante da vida de Cristo". Diversos detalhes anedóticos dão vivacidade à composição, como as serviçais em atividade, uma delas uma mulata, e a animada interação coreográfica dos Apóstolos com Cristo. Outros introduzem associações heterodoxas para a doutrina católica, pois sobre a mesa aparecem ossos de carneiro, "em flagrante contradição com os rígidos preceitos do Catolicismo de outrora quanto à restrição de consumo de carne durante a Quaresma".

A tela foi emprestada para o Governo de Minas Gerais nos anos 70 por ocasião da inauguração do Palácio das Artes em Belo Horizonte, e temeu-se que ela nunca mais fosse devolvida, "pagando" desta forma os gastos públicos para levar o asfalto até o Caraça. O colégio estava na época ainda abalado pelo desastroso incêndio de 1968, que encerrou sua brilhante trajetória como educandário da elite brasileira, mas salvando-se porém a obra do pintor. O caso despertou uma reação veemente em Carlos Drummond de Andrade, que escreveu um poema sobre isso: "Ataíde à Venda?", do qual vale transcrever o fecho:

"Que vale ter Ataíde // e não ter teto e parede? // Ser um sacrário de arte, // a mais pura arte mineira, // orgulho do nosso Estado // e da alma brasileira, // sem ter como restaurar // a velha casa de ensino // onde ensinamos a amar // as criações do passado? // Debatem os lazaristas // o grave dilema, enquanto // Manuel da Costa Ataíde // e sua tela, suprema // esperança de resgate // da indigência caracense, // viram tema de comércio. // Corre, corre, Aureliano, // vai, Conselho de Cultura, // depressa, Assembleia, vai, // salva os padres agoniados // da prontidão que os achaca, // e salvando-os, preservando-os // da mercantil ameaça, // salva a arte, salva a glória, // salva o máximo tesouro, // a riqueza que não passa: // Cristo-Ceia do Caraça!"

A obra no final voltou à sua casa. O colégio foi restaurado e também a tela recebeu reparo pelo Centro de Conservação e Restauração da Universidade Federal de Minas Gerais.

Cristo em oração no Horto das Oliveiras
Parte da série de esculturas de Aleijadinho encarnadas por Mestre Ataíde
Santuário de Matosinhos
Ataíde Hoje

As diversas apreciações críticas elogiosas que foram disseminadas em trechos anteriores tornam desnecessário descrever novamente em detalhe o elevado prestígio de que o artista desfruta entre a crítica especializada e mesmo o grande público que de algum modo se interessa pela história da arte do Brasil nos dias de hoje. Ele já foi inclusive tema de estudos de eruditos estrangeiros. Basta então lembrar que seu nome é consensualmente reconhecido como de importância central na história da pintura brasileira. Mais do que um patrimônio nacional, ele ainda inspira novos artistas, além de suas obras serem objeto de projetos escolares e serem infalivelmente mencionadas em guias turísticos ao lado das de Aleijadinho como entre os principais atrativos culturais da região de Minas Gerais.

A pesquisa sobre sua vida e obra continua e ainda há muito por desvendar. Textos especializados aparecem regularmente e há poucos anos foram descobertas pinturas suas desconhecidas, ocultas sob repinturas posteriores, realizadas nas Capelas dos Passos do Santuário de Matosinhos, as mesmas capelas onde estão as estátuas de Aleijadinho que ele encarnou. Os órgãos do patrimônio histórico brasileiro realizam ações de conservação e restauro do seu legado material, mas por outro lado, em alguns casos suas pinturas estão em mau estado de conservação, e exigem a atenção urgente das autoridades responsáveis e das comunidades onde estão para que esses tesouros da arte colonial brasileira não se percam para sempre.

São Francisco em agonia, Igreja de São Francisco em Mariana, MG
Listagem de Obras
(Adaptada da cronologia do Instituto Itaú Cultural)

Pintura de Tetos, Panos de Porta e Outros Painéis:

  • Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Mariana (1791/1792 - pano de porta; 1794/1795 - forro da sacristia)
  • Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Piranga (1800)
  • Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (1801/1812 - forro da nave)
  • Igreja Matriz de Conceição do Mato Dentro (1805 - seis painéis)
  • Igreja Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara (1806/1807 - duas imagens de Cristo)
  • Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (1818/1819 - retoques no forro da nave da Igreja; pintura parietal nas três primeiras Capelas dos Passos)
  • Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto (1818 - quatro painéis grandes)
  • Catedral de Mariana (1819/1821)
  • Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Mariana (1823 - teto da capela-mor)
  • Câmara de Mariana (1824 - um retrato do Imperador)
  • Igreja Matriz de Santo Antônio, em Ouro Branco
  • Capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Santa Bárbara (1827)
  • Colégio do Caraça (1828 - A Última Ceia)

Douramento de Talha:

  • Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Mariana (1793/1794 - retábulo; 1794/1795 - altar-mor; 1804/1807 - trono e altar-mor)
  • Santa Isabel, Mariana (1795/1800 - altar)
  • Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Piranga (1800 - altar)
  • Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (1801/1812; 1825 - tabernáculo)
  • Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto (1812 - capela e oratório; 1818 - prateamento de sessenta castiçais e oito palmas; 1824 - altar-mor; 1825 - arco do cruzeiro, quatro portadas e o presbitério; 1826 - altares laterais e dois púlpitos)
  • Catedral de Mariana (1819/1821)
  • Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Mariana (1823 - inúmeras peças; 1826 - termina o altar-mor)
  • Capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Santa Bárbara (1827)

Encarnação de Estátuas:

  • Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (1781; 1808/1809; 1818/1819)
  • Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Mariana (1793/1794)
  • Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (1805 - estátuas de São Roque, Santo Ivo, São Francisco, o Pontífice, dois Cardeais e de São Luís)
  • Igreja Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara
  • Igreja Matriz de Conceição do Mato Dentro
  • Matriz de Santo Antônio, em Itaverava (1811/1812 - estátua de Nossa Senhora)

Projeto do Retábulo Arquitetural:

  • Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto (1813)

Iluminação de Manuscritos:

  • Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, onde estão preservados os Livros de Compromisso das Irmandades de Nossa Senhora das Mercês, da Freguesia de São Bartolomeu, e da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, de Antônio Pereira

Fonte: Wikipédia

Veiga Valle

JOSÉ JOAQUIM DA VEIGA VALLE
(67 anos)
Escultor, Dourador, Pintor e Político

* Arraial da Meia Ponte (Atual Pirenópolis), GO (09/09/1806)
+ Goiás (Cidade de Goiás ou Goiás Velho), GO (29/01/1874)

José Joaquim da Veiga Valle, em geral conhecido simplesmente por Veiga Valle, foi um artista plástico pouco comentado nos livros de História da Arte do Brasil, cujo trabalho de apurado estilo artístico merece, sem dúvida, maior atenção por parte dos estudiosos da arte produzida nesse país tão rico e vasto de diversidade e sincretismo cultural que é o Brasil.

Nascido em Arraial da Meia Ponte, atualmente Pirenópolis, GO, de família simples, mas de projeção local (seu pai exercia várias atividades políticas, religiosas e comerciais), quase nada se sabe sobre sua infância e adolescência. Não frequentou ensino formal e acredita-se que tenha começado a conceber sua obra no fértil ambiente artístico e religioso em que vivia.

José Joaquim da Veiga Valle nos legou grande acervo de esculturas, hoje catalogadas em torno de trezentas peças, produzidas em meio ao sertão do cerrado, isolado das principais escolas artísticas do país.

Seguindo as inúmeras atividades do pai, em 1833 entrou para a Irmandade do Santíssimo Sacramento e, em 1837, foi eleito vereador da cidade. Mudou-se para a cidade de Goiás em 1841, a convite do então presidente da Província, José Rodrigues Jardim, com a função de dourar os altares da matriz da capital. Hospedado na casa do presidente, Veiga Valle casou-se no mesmo ano com a filha desse, Joaquina Porfíria Jardim, com quem teve oito filhos.

Em Goiás iniciou os trabalhos que mais tarde o fariam ser reconhecido como maior escultor da região. Trabalhava quase sempre com madeira cedro, que é macia, cheirosa e de grande durabilidade. Suas esculturas eram feitas em partes separadas, que depois eram encaixadas. A delicadeza de detalhes, proporções reais e impressão de movimento das esculturas são algumas das características de sua obra.

Esculpiu uma enorme variedade de santos, a maioria encomendada pelos moradores da cidade. Os mais populares eram as Madonas (representações de Nossa Senhora), Meninos Jesus, Santo Antônio e São José de Botas, padroeiro dos bandeirantes e desbravadores. Fiel seguidor da estética cristã, fez apenas uma obra profana: um nu artístico, inacabado, que mede 25 cm. Produziu de 1820 a 1873, provavelmente com ajuda de seu filho Henrique, única pessoa a quem transmitiu seus conhecimentos.

"A obra de Veiga Valle é singular por seus aspectos formais e históricos. Suas imagens são eruditas e aparentemente anacrônicas. No século XIX, a província de Goiás não passa de mera 'expressão geográfica' sem peso maior na cultura do Império. Veiga Valle é a sua manifestação isolada: uma arte que recebe a marca do extemporâneo quando referida a um modelo abstrato de estilo."
(Heliana Angotti Salgueiro "A Singularidade da Obra de Veiga Valle" - 1983, p. 25)

Suas imagens podem ser reconhecidas facilmente: a característica de seu estilo, formas e cores é singular, inconfundível, escapa à arte anônima serial que existe na estatuária religiosa. São marcadas por soluções muito particulares, tanto da técnica - desenho, cromatismo, acabamento - quanto da expressividade - fisionomia e gestualidade.

Veiga Valle é o mais destacado artista que viveu em Goiás no século XIX. Há registros de outros artistas, como o pintor Alferes Bento José de Souza, de 1782, anterior a Veiga Valle; passou dezessete anos no local, confeccionando retábulos para igrejas. Há registro de que, no fim do século XIX, o pintor André Antônio da Conceição foi à Cidade de Goiás para pintar o forro da Igreja São Francisco de Paula. Benevenuto Sardinha da Costa foi outro pintor que executou painéis documentados no Museu das Bandeiras, na mesma cidade. Dentre esses artistas, o que maior destaque obteve foi Cândido de Cássia Oliveira, professor de desenho de ornatos e figuras no Liceu de Goiás, em 1872, escultor e profundo admirador da obra de Veiga Valle.

Santa Bárbara - Acervo do Museu de Arte Sacra da Igreja da Boa Morte, Cidade de Goiás
Influências Artísticas

Pouco se sabe a respeito da iniciação artística de Veiga Valle, mas o mais provável é que tenha recebido ensinamentos do padre Manuel Amâncio da Luz. Não há relatos que comprovem os dotes artísticos do padre, e o que se nota é que o aluno superou seu mestre.

Em uma época em que o interior do Brasil encontrava-se totalmente isolado das principais correntes e produções culturais, o acesso aos meios de comunicação era bastante difícil. Desta feita, eram raros os livros, gravuras, desenhos e pinturas em Goiás.

Há registros de que Veiga Valle nunca saiu do interior do Estado, desta forma as fontes de sua inspiração artística foram, sobretudo, as imagens sacras que chegavam de Portugal, do Rio de Janeiro ou da Bahia, em direção às igrejas e oratórios particulares. Haviam também outros ornamentos, como altos-relevos na prataria portuguesa, baiana e carioca que enfeitavam as igrejas, identificados como folhas de acanto, conchas, guirlandas, treliças ou guilhochês, elementos presentes também em algumas de suas obras.

Outras fontes podem ser as porcelanas importadas, os bordados dos paramentos religiosos e da indumentária litúrgica vindas de Portugal, França e Itália, e também os livros de preces e devoção, as Bíblias ilustradas. Desta forma, mantinha contato com a iconografia religiosa, as simbologias e códigos canônicos. Como se pode notar, era vasta sua fonte de inspiração, somando-se a isso um gênio de intensa criatividade, apurado rigor técnico e refinado senso estético.

O professor Bruno Correia Lima, em seu livro "O Genial Santeiro em Goiás", diz que:

"a par de sua extraordinária sensibilidade artística, deve ter sofrido influência também das produções neoclássicas do ambiente em que viveu (…). Provavelmente apoiou-se nos santos existentes, pelo menos quanto à indumentária e simbolismo, além da natural obediência que os artistas devem ter à iconografia cristã."
(
Elder Camargo de Passos "Veiga Valle: Seu Ciclo Criativo" - 
1997, p. 117)

"Veiga Valle é artista do Império. Não obstante, sua escultura é ambivalente: pautando-se por padrões estilísticos do Neoclassicismo, é moderna; prolongando a codificação barroca, está aparentemente deslocada. Singular porque trabalha isolado, desprovido do apoio de prática anterior e local, é escultor de vulto: dominando dois estilos, não raro os combina numa única imagem ( … ) Erudita, não é extemporânea a obra de Veiga Valle. Não é por ser realizada em província estagnada e distante que o seu barroco pode receber o apelativo tardio."
(Heliana Angotti Salgueiro "A Singularidade da Obra de Veiga Valle - 1983, p. 19)

São Miguel Arcanjo - Madeira policromada. Acervo do Museu de Arte Sacra da Igreja da Boa Morte, Cidade de Goiás.
A Técnica

A execução de imagens pode ser dividida em três etapas distintas: primeiro, a estrutura ou o suporte, que são a madeira e o entalhe; segundo, uma base intermediária entre a madeira e a capa de douração e pintura: o aparelho; e por fim a douração, a policromia e o esgrafiado. A separação entre os ofícios de entalhador, dourador e pintor foi menos efetiva no Brasil do que em Portugal, pois como se pode perceber, Veiga Valle ocupava-se de todas as etapas do processo.

Ele esculpia, principalmente, em madeira cedro, pois a considerava macia, cheirosa e de grande durabilidade, mas utilizou também o bálsamo e o jatobá. A madeira era abatida na lua minguante, época em que a seiva encontra-se recolhida na raiz, para evitar a incidência de caruncho. Depois os troncos permaneciam em repouso por cerca de oito meses na sombra, quando eram cortados em tamanhos diversos e então passavam por um processo rudimentar de imunização, cozidos em tacho de cobre, em água misturada a vários vegetais, com o objetivo de retirar as resinas restantes e proporcionar maior dilatação dos poros da madeira, tornando-a mais resistente ao clima árido do cerrado. Após a secagem dos cepos, iniciava-se o processo escultórico.

As suas imagens não se constituíam, na sua maioria, de peças inteiriças: os membros eram esculpidos separadamente e depois encaixados. Após o término do talhe, a peça era preparada para a carnação e a policromia. As falhas na madeira eram cobertas com camadas de gesso e cola à base de clara de ovo ou boldo africano. Após a fase de aplicação e polimento do aparelho, colocava-se o "bolo armênio" ou "francês": óxido de ferro hidratado. Todas as misturas, tintas, colas e banhos eram preparados pelo artista.

Fazia o douramento com folhetas de ouro e prata importados da Alemanha ou vindas do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. A douração e a prateação eram feitas pelo mesmo processo, em que as folhas eram espanejadas com uma broxa fina. Após a secagem fazia-se a brunidura, depois envernizava-se para evitar a oxidação. A fixação das folhetas era feita nos mantos, véus e camisolas, porém algumas de suas peças são totalmente douradas.

A próxima etapa é a pintura, ou policromia, por cima da douração. A pigmentação de sua paleta se compunha de materiais naturais, em maior parte; em menores quantidades, importada da Europa.

Da vegetação - urucum, ruibarbo, açafrão, resinas, etc. - extraía cores como amarelo e vermelho, um pouco de azul e muito raramente o verde. Os matizes eram obtidos pela mistura dos pigmentos. Alguns animais eram usados como fonte de corantes, como um inseto chamado cochonilha, que dá um tom escarlate brilhante, ou moluscos de tom sépia e púrpura. Os corantes minerais mais empregados foram o óxido de ferro, de cor vermelho-escuro, popularmente conhecido como sangue-de-boi, ou terra de cor amarela, violeta e vermelha. Alguns tons mais raros na natureza, como matizes de verde e azul, eram trazidas do Rio de Janeiro: tintas importadas da Europa, uma vez que não haviam, ainda, indústrias no país.

Após a aplicação da tinta na imagem dourada, segue-se para a ornamentação: o esgrafiado ou estofamento. Os desenhos são feitos com o esgrafito, um tipo de estilete, retirando a camada externa de tinta seca e deixando em evidência a camada interna, o "pão-de-ouro" brunido, revelando os ornamentos feitos do contraste entre a pigmentação e o dourado.

No esgrafiado o artista compõe desenhos de traços finos regulares e contínuos, caracteristicamente rococó, onde se observam os buquês de flores, medalhões ovais, volutas, formas de conchas, folhas de acanto, palmas. Há ornamentos planos e em alto relevo, que remetem a trabalhos de ourivesaria, com fineza de execução.

A carnação é o nome dado ao tom de pele que se colocava nas partes descobertas do corpo, como o rosto, braços, mãos, pés e pernas. Os olhos, em uma fase mais avançada, passaram a ser feitos de vidro. A última etapa era o envernizamento. Os vernizes eram feitos de resinas, gomas ou bálsamos em álcool, terebintina ou óleo de linhaça.

São Joaquim com bastão - Madeira policromada
O Estilo

Podemos observar a influência Veiga Valle em outros artistas. Mas, ao que tudo consta, não teve alunos em sua oficina: ele trabalhava sozinho, ou provavelmente com a ajuda de seu filho Henrique.

Sua obra caracteriza-se, sobretudo, pela produção de imagens sacras, que eram produzidas por encomenda da igreja e de particulares. O artista atendia não só ao público local como também recebia encomendas de outros estados. Os santos que esculpia variavam de acordo com o gosto de cada cliente. As imagens de maior destaque eram as madonas, que eram representadas por Nossa Senhora da ConceiçãoNossa Senhora D’AbadiaNossa Senhora dos RemédiosNossa Senhora das DoresNossa Senhora da PenhaNossa Senhora do Bom PartoNossa Senhora das MercêsNossa Senhora da GuiaNossa Senhora do CarmoNossa Senhora do Rosário, etc.

O acervo levantado por Elder Passos comprova que as imagens de Nossa Senhora da ConceiçãoNossa Senhora D’Abadia eram as de maior devoção popular. Segundo o autor, a madona é, por si, um tema barroco por excelência. Os santos são personagens históricos ou legendários, enquanto que a virgem é um ser celestial, de transcendência pura, elevando a devoção ao nível da comunhão com o transcendente, com Deus.

Esse é o traço mais marcante da produção denominada barroca: a supremacia da igreja católica, haja vista que a arte barroca se caracteriza sobretudo pelo tema religioso. Por meio da riqueza e profusão de cores e imagens presentes nas igrejas, atraíam-se os fiéis em busca da salvação. Quando se fala de arte barroca no Brasil estamos, necessariamente, remetendo à arte sacra.

Com uma breve descrição das imagens de Nossa Senhora, observem-se algumas das principais características de Veiga Valle. No ápice da imagem, véu esvoaçante decorado com flores, estrelas, pontos, etc, na beirada dos mantos, como acabamento aparece uma tarja dourada com cunhos de baixo-relevo, emoldurando cabelos castanhos repartidos ao meio. Sobre os ombros, um xale ornado em listras de várias cores e dourado. As túnicas que cobrem as peças prendem-se à cintura com faixas ou cintos decorados com motivos florais variados. Os espaços vazios são preenchidos com linhas horizontais, verticais, transversais, côncavas, de acordo com a dobra do tecido e sua inventividade.

Conforme o tamanho da peça, eram variáveis a decoração e os ornamentos. As peças maiores apresentam túnica com larga faixa desenhada em alto relevo feito de gesso com douramentos. As mangas do vestuário embaixo da túnica são visíveis entre o cotovelo e o punho, de cores e desenhos contrastantes com a tonalidade suave e homogênea da túnica, geralmente em tom rosa-forte com xadrez dourado. As mangas da túnica têm contorno verde metálico. Vendo-se a peça de frente, observa-se a frente e o verso dos mantos, com o verso em tom mais forte criando contraste e dando destaque à beleza do conjunto. A imagem está pisando, geralmente, numa esfera de cor azul-marinho, com aplicações de cabeças de querubins com asas.

O seu período de atividade artística compreendeu a época entre 1820 e 1873. Veiga Valle teve que interromper a produção de suas obras em decorrência da doença que o abalou, vindo a falecer alguns meses depois, aos 68 anos, em 29 de janeiro de 1874, na Cidade de Goiás.

Nas comemorações do centenário de morte, sua sepultura foi transferida para o Museu de Arte Sacra da Boa Morte, onde está exposta boa parte de sua obra.

Imaginário erudito, profundo conhecedor de anatomia, iconografia, valores espaciais, entalhadura, douração, pintura, esgrafiado e dos segredos dos materiais, se o artista não frequentou escolas, isso não o fez menos genial, e a expressão de sua sensibilidade artística é fato comprovado pelo legado de sua obra.

Até o ano de 1940 a arte de Veiga Valle permaneceu no anonimato, e as suas obras eram conhecidas apenas nas igrejas e oratórios em Goiás e Mato Grosso, onde muitas vezes seus proprietários ignoravam o valor artístico de suas peças. Foi quando apareceu em Goiás o artista plástico João José Rescala, que conheceu o trabalho do escultor e ficou admirado pela qualidade das peças. Teve então a iniciativa de organizar a primeira exposição da obra de Veiga Valle, realizando uma catalogação de grande parte do acervo. A partir de então a arte de Veiga Valle começou a se difundir entre os historiadores de arte, realizaram-se exposições e foram editados artigos em revistas e livros, alguns dos quais são utilizados como fonte deste trabalho.

O que se pode observar é que as pesquisas sobre a imaginária brasileira ainda estão incompletas. Há com certeza um rico patrimônio artístico a ser ainda descoberto e estudado, para que se possa ter um panorama cada vez mais abrangente da variedade artística e cultural existente do Brasil.

Fonte: Biapó e Wikipédia