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Cego Aderaldo

ADERALDO FERREIRA DE ARAÚJO
(89 anos)
Violeiro e Poeta Popular

* Crato, CE (24/06/1878)
+ Fortaleza, CE (29/06/1967)

Lendário como o Padre Cícero, como Frei Damião, Lampião, ou em termos mais recentes, tão famoso e querido quanto Luiz Gonzaga, o Cego Aderaldo vagueou por todos esses rincões ora cinza, outra, ora verdejantes do Nordeste brasileiro. Com sua rabeca melodiosa e os versos a brotar fáceis do seu estro, tornou-se uma referência regional, para ganhar depois notoriedade em todo o país.

Aderaldo Ferreira de Araújo não nasceu cego. Veio ao mundo com a luz dos seus olhos em 24 de junho de 1878, numa ruazinha suburbana da cidade do Crato. Muitos o consideravam filho de Quixadá, onde se radicou desde os primeiros meses de vida.

"Tenho aqui minha morada
como residência e pouso
Vivo alegre e cheio de vida
Que não me falta conforto
Penso que só saio daqui
Um dia depois de morto"

Versava para esclarecer a sua relação com Quixadá, onde o pai Joaquim Rufino Araújo, alfaiate de profissão, chegou naqueles finais do Século XIX com a mulher, Dona Olímpia e três filhos, dos quais Abelardo - o nome verdadeiro do famoso cego - era o caçula. Ninguém o chamaria por todo o sempre de Abelardo, e sim de Aderaldo, tomando a deficiência visual a condição de pré-nome.

Órfão bem cedo, pois tinha poucos anos quando faleceu o pai, vítima de um derrame (congestão, como se dizia outrora) que o deixou inválido por muito tempo, o que levou Aderaldo, com tenra idade, a começar a lutar pela sobrevivência. Foi aprendiz de carpinteiro, auxiliar de ferreiro, trabalhou de um tudo, "só não fui guia de cego", costumava dizer. E cego se tornaria já quando rapaz, aos 24 anos, abruptamente, em plena rua de Quixadá, após ingerir um copo d’água. Trabalhava então como ajudante de uma caldeira, sob alta temperatura. Sentiu uma sede imensa, o que o levou a pedir um copo d’água numa casa próxima. Mal acabara de sorver a água, sentiu uma dor incomensurável na cabeça, uma sensação de aperto sobre os olhos, que pareciam receber uma carga de espinhos. Em minutos, a escuridão absoluta tomou posse dele. A vida seria outra dali em diante. O que fazer, sem a vista? Cansado, adormeceu e no sono sonhou que estava cantando. E foi assim, ao levantar-se, que pela primeira vez Aderaldo recorreu à inspiração poética que guardava no peito, fazendo, em versos, uma prece a São Francisco:

"Ó Santo de Canindé
que Deus te deu cinco chagas
fazei com que este povo
pra mim faça as pagas
uma sucedendo as outras
como o mar soltando vagas"


Milagre do santinho de Canindé, protetor dos pobres e desvalidos, ou fruto da necessidade de arranjar o pão de cada dia sem a luz dos olhos, Aderaldo tomou prontamente a decisão de que não iria estender a mão à caridade, encontrando na sua arte o meio de sensibilizar o povo a oferecer-lhe "as pagas como o mar soltando vagas".

Para felicidade sua, uma moça de Quixadá, sua conhecida, e apiedando-se de sua inesperada cegueira, doou-lhe um cavaquinho, instrumento que, sem ninguém para ensinar, aprendeu a manejar em curto espaço de tempo. Todo o seu talento musical se projetaria a partir daí. Além do cavaquinho, tornou-se exímio tocador de violino (rabeca), de bandolim e quantos outros instrumentos de corda lhe caíssem às mãos.

Começaram as cantorias. Garante o pesquisador João Eudes Costa, autor de um cuidadoso estudo sobre Cego Aderaldo, que sua primeira estrofe, em som abafado, teria sido esta:

"Ah! Se o passado voltasse
todo cheio de ternura
eu ainda tendo vista
saía da vida escura.
Como o passado não volta
aumenta a minha tristeza
só conheço o abandono
necessidade e pobreza"

O desabafo de quem ainda não dimensionara toda a grandeza do seu próprio valor que iria, pouco a pouco, se afirmando nos desafios emocionantes nas feiras ou nos terreiros das fazendas, provocando lágrimas e gargalhadas dos circundantes, sempre em número crescente.

De acordo com o mesmo depoente, Aderaldo teria lhe confessado que se sentia feliz após uma cantoria, quando recebia, além de alguns niqueis  muitas prendas como milho, feijão, queijo, farinha, rapadura, essas coisas típicas do sertão, que lhe garantiam o seu sustento e de sua mãe viúva. Tinha na mãe um esteio espiritual, um objetivo de vida. Cantava e versejava pensando nela, para dar-lhe o que precisava em sua solidão na velhice.

Um dia, quando retornava risonho de um desafio de viola, com o alforje prenhe de mantimentos, deparou-se com a mãezinha querida agonizando. Morreria momentos depois, coberta pelas lágrimas derramadas dos olhos opacos do filho generoso.

A pobreza era de tal monta, que - contava Cego Aderaldo - não dispunha de vintém para fazer o sepultamento da velhinha, que teve o corpo estirado sobre uma esteira de palha, enquanto ele saía transido de dor, em busca de meios para dar um enterro cristão à mãe que idolatrava.

Soube que, no único hotel de Quixadá naquele tempo, estavam hospedados uns paroaras, como se chamavam os nordestinos que retornavam da Amazônia endinheirados. Os homens bebiam em grande algazarra, deles se aproximando, Cego Aderaldo para pedir uma ajuda destinada ao enterro da mãe. Um dos homens, muito embriagado, disse que só ganha dinheiro quem trabalha e zombou do pedinte humilhado. Mesmo assim, entre lágrimas, Aderaldo disse que diria uns versos para justificar a caridade e improvisou na hora:

"Ó Deus,
lá do alto do céu,
de sua celeste cidade,
ouça-me cantar a força
devido à necessidade:
aqui chorando e cantando
e mãe na eternidade"

E continuou soluçante:

"Perdoe-me minha mãe querida
não é por minha vontade
são as torturas da vida
que vêm com tanta maldade
chorarei meus sentimentos
de vê-la na eternidade"

Os paroaras, mesmo bêbados, não esconderam a emoção e lhe deram 20 mil réis, dinheiro bastante para as despesas com o sepultamento.


Rumo a Amazônia

A seca de 1915 provocou o esvaziamento dos sertões do Nordeste, em especial os do Ceará. Milhares e milhares de homens, mulheres e crianças embarcaram pelo porto de Fortaleza com destino a Manaus e daí para as impenetráveis florestas amazônicas. Cego Aderaldo foi um dos cearenses a ir embora, traduzindo em versos, aos que o escutam a bordo do vapor do Loide, as razões da sua partida:

"Canto para distrair
este meu curto poema
vou fugindo da miséria
que é este o penoso tema
desta terra de Alencar
deste berço de Iracema.
Fugi com medo da seca
Do pesadelo voraz
Que alarmou todo o sertão
Da cidade aos arraiás"

Não foi das mais longas a permanência de Aderaldo no Amazonas, voltando carregado pela saudade de sua terra sofrida que não tinha olhos para ver, mas um imenso coração para sentir. De sua passagem pelo "inferno verde", restou um dueto que disputou com um cantador índio por nome Azubrin.

Encontro Histórico

Em 15 de fevereiro de 1924 aconteceu em Juazeiro um encontro memorável reunindo algumas figuras marcantes do Nordeste: Padre Cícero Romão Batista, Drº Floro Bartolomeu, Virgulino Ferreira, o Lampião, e Cego Aderaldo.

Lampião quis ouvir a cantoria do célebre violeiro e Aderaldo não se fez de rogado. Puxou a rabeca, tirou a nota mais apropriada e soltou o verbo:

"Existem três coisas
que se admira no sertão:
o cantar de Aderaldo,
a coragem de Lampião
e as cousas prodigiosas do Padre Cícero Romão"

O temível cangaceiro envaideceu-se, abraçou Cego Aderaldo ofertando-lhe, na ocasião, umas moedas de vintém e uma pistola de estimação que carregava na cintura. Consta que Lampião, tirando as vezes de cantador, improvisou uns versos para Aderaldo:

"Aderaldo seu pedido
pra mim foi muito belo
se você não fosse cego
lhe dava um 'papo-amarelo'
tome esta pistola velha
que matou Antonio Castelo"

A pistola e uma das moedas são entesouradas pelo pesquisador João Eudes, de Quixadá, que as recebeu de Aderaldo alguns anos antes de sua morte.

Cego Aderaldo e a Orquestra de Crianças
Uma Orquestra em Cinema

Aderaldo não casou, mas se tornou pai adotivo de, nada menos, que 26 crianças pobres do interior nordestino, a quem cuidou com carinho e devoção paternos, educando-os e encaminhando-os na vida. Com vários deles, que possuíam ouvido para música, formou uma orquestra de cordas, que animava as suas célebres apresentações por diferentes rincões do Nordeste.

Já consagrado, não apenas nessa região, mas em todo o País, o Cego Aderaldo conseguiu fazer um vasto número de amigos. Gente importante no Brasil como o ex-Governador Adhemar de Barros, de São Paulo, que lhe presenteou com um projetor de cinema. Este projetor e a orquestra constituíam atrações nas noitadas de Aderaldo por toda parte. O mais curioso: o filme era mudo, mas Aderaldo fazia a narração dos episódios a partir do conhecimento prévio da história.

Um dos filmes que os sertanejos mais aplaudiam era a "Paixão de Cristo", um velho celuloide silencioso que, por anos seguidos, durante a Semana Santa, atraía centenas de espectadores. Num vilarejo miserável, certa feita, assistindo à fita, o cangaceiro João Vinte e Dois revoltou-se com as torturas impostas pelos judeus a Jesus Cristo. Sacou a garrucha e sapecou um tiro certeiro num dos soldados, vazando a tela improvisada.

Outra curiosa passagem da vida de Aderaldo aconteceu quando da visita de Adhemar de Barros a Quixadá. Candidato à Presidência da República, o governador paulista fez questão de receber a visita do "seu amigo Aderaldo", a quem já presenteara com o tal projetor. Aderaldo animou o encontro com suas cantorias, regadas a muita cerveja. Lá pelas tantas, sentindo que começava a ficar tonto com a bebida, chamou o guia e lhe disse em voz alta os versos que arrancaram a risada do Governador e demais convivas:

"Menino vamos s’imbora
que a cidade está em jogo
é o guia puxando o cego
e o cego puxando fogo"

Um dos 26 filhos adotivos de Aderaldo, Geraldo Rodrigues, guarda um repertório de histórias do pai, cuja memória venera fortemente. "Foi um ótimo pai, educador de todos os filhos que lhe obedeciam e lhe devotavam o maior respeito, dele recebendo em troca o maior carinho", recorda Geraldo Rodrigues.

Monumento a Cego Aderaldo em Quixada, Ceará  
Com Rogaciano Leite e Silvio Caldas

Cego Aderaldo, em suas andanças pelo Brasil, ia difundindo cultura e preservando as tradições da gente nordestina. Nessas viagens pressentia o despontar dos talentos que o sertão escondia, a exemplo do grande poeta e cantador Rogaciano Leite, que anos depois viria morar em Fortaleza, onde constituiu família, formou-se, publicou vários livros e militou na imprensa.

Rogaciano Leite andejou com Aderaldo por muitas vilas e povoados do Nordeste, antes de se tornar um nome consagrado das letras nacionais. O poeta e jornalista pernambucano tornara-se amigo de Sílvio Caldas, o célebre cantor romântico apelidado de "caboclinho querido do Brasil", sendo dele parceiro na bela canção "Cabelos Cor de Prata", que o cantor incluiu em seu repertório.

Um dia Rogaciano Leite levou Cego Aderaldo para conhecer Sílvio Caldas, que deixou gravado este depoimento formidável, em poder de Eudes Costa e com o qual, inclusive, ilustrou um extraordinário programa radiofônico sobre a vida e a obra do menestrel cearense, divulgado em emissora de Quixadá.

Nesse depoimento, Sílvio Caldas conta que teve ocasião de assistir a uma cantoria entre Cego Aderaldo e Rogaciano Leite em determinado lugarejo. Com a palavra o saudoso cantor de "Deusa da Minha Rua":

A feira estava animada, o povo em redor dos violeiros, vibrando a cada desafio. Rogaciano Leite, jovem e bonito, empolgado com a presença de muitas cabrochas atraentes na platéia, achou à certa altura de fazer uma provocação com o parceiro, dizendo mais ou menos assim:

Tô cantando com este velho
este velho que não dá mais nada
este velho todo enferrujado
já devia estar na cama deitado...

Os jovens, mais as mocinhas, gostaram da tirada e cobriram de aplausos as palavras de Rogaciano, mas Aderaldo tinha a resposta na ponta da língua:

Andei procurando um besta
e de tanto procurar um besta
encontrei este rapaz
que nem serve pra ser besta
porque é besta demais.

Cego Aderaldo liquidara ali mais um parceiro de viola, segundo o depoimento de Sílvio Caldas.

Com Os Anjos No Céu

Cego Aderaldo morreu no dia 29 de junho de 1967, aos 89 anos de idade. Partiu pobre como viveu. De herança para o filho Mário, que o acompanhou até o fim dos seus dias, uma casinha num bairro de Fortaleza que lhe fora doada pela grande escritora Rachel de Queiroz, uma das suas mais renomadas admiradoras, e outra em Quixadá. A rabeca, que adquirira no distante ano de 1916 por 200 mil réis, ele doou ainda em vida ao filho Geraldo Rodrigues.

Verdadeiro mito dos sertões, Cego Aderaldo ainda hoje é mote constante dos desafios de violas que se fazem nos pequenos burgos do interior. O cantador Adalberto Ferreira, em uma de suas cantorias, afirmava que "vi o anjo Gabriel há tempo chamado e vi Cego Aderaldo cantando com os anjos lá do céu".

Uma das primeiras homenagens ao genial cantador sertanejo se encontra em forma de estátua, defronte à rodoviária de Quixadá, num trabalho do escultor João Bosco do Vale e por iniciativa de Alberto Porfírio, também cantador, e um dos mais denodados batalhadores pelo resgate da genuína cultura do Nordeste.


Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho

Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.

Um dia, determinei
A sair do Quixadá -
Uma das belas cidades
Do estado do Ceará.
Fui até o Piauí,
Ver os cantores de lá.

Me hospedei na Pimenteira
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior,
No Angico e na Baixinha.
De lá eu tive um convite
Para cantar na Varzinha.

Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
- Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?

Eu lhe disse: - Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo -
Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!

O dono da casa disse:
- Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos -
Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.

Chamando um dos filhos, disse
Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá -
E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.

Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador
E dizendo: - Lá em casa
'Tem um cego cantador
E meu pai mandou dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!

Zé Pretinho respondeu:
- Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!

Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
As cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.

O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram duma só vez,
Todos no primeiro arranco

Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:

Vieram o capitão Duda
Tonheiro, Pedro Galvão,
Augusto Antônio Feitosa
Francisco, Manoel Simão
Senhor José Campineiro
Tadeu e Pedro Aragão.

O José das Cabaceiras
E o senhor Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.

Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.

Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras -
Essas duas eram da igreja
As mais exímias cantoras.

Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Segundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.

Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha -
Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.

Depois, trouxeram o negro,
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.

Ele tirou a viola
De um saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
- Oh, que viola bonita!

Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.

Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
- Meu Deus, que rabeca feia!

Uma disse a Zé Pretinho:
- A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!

E disse o capitão Duda,
Como homem muito sensato:
- Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato -
Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!

Disse mais: - Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta -
Da minha parte, dou dez!

Me disse o capitão Duda:
- Cego você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor -
Nada leva quem apanha!

E nisto as moças disseram:
- Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da Parte dele, deu dez
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.

Então disse Zé Pretinho:
- De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo -
Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo ...

Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse pra mim:
- O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!

Então eu disse: - Seu Zé,
Sei que o senhor tem ciência -
Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!

Zé Pretinho:

- Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho -
Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!

Cego Aderaldo:

- Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação -
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!...
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!

Zé Pretinho:

- Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho -
Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!

Cego Aderaldo:

- Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na saia
Rosas e trovas de amores -
Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!

Zé Pretinho:

- Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus -
O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!

Cego Aderaldo:

- Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim -
Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!

Zé Pretinho:

- Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira,pura -
O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!

Cego Aderaldo:

- Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo -
Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!

Zé Pretinho:

- Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro -
Sai dizendo: - Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!

Cego Aderaldo:

- Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua -
Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!

Zé Pretinho:

- No sertão, peguei
Cego malcriado -
Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!

Cego Aderaldo:

- Negro, és monturo,
Molambo rasgado,
Cachimbo apagado,
Recanto de muro!
Negro sem futuro,
Perna de tição,
Boca de porão,
Beiço de gamela,
Vento de moela,
Moleque ladrão!

Zé Pretinho:

- Vejo a coisa ruim -
O cego está danado!
Cante moderado,
Que não quero assim!
Olhe para mim,
Que sou verdadeiro,
Sou bom companheiro -
Canto sem maldade
E quero a metade,
Cego, do dinheiro!

Cego Aderaldo:

- Nem que o negro seque
A engolideira,
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abeque -
Mas esse moleque
Hoje dá pinote!
Boca de bispote,
Vento de boeiro,
Tu queres dinheiro?
Eu te dou chicote!

Zé Pretinho:

- Cante mais moderno,
Perfeito e bonito,
Como tenho escrito
Cá no meu caderno!
Sou seu subalterno,
Embora estranho -
Creio que apanho
E não dou um caldo...
Lhe peço, Aderaldo,
Que reparta o ganho!

Cego Aderaldo:

- Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo -
Cara de cavalo,
Cabeça de burro!

Zé Pretinho:

- Fale de outro jeito,
Com melhor agrado -
Seja delicado,
Cante mais perfeito!
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero!
Cantemos maneiro,
Com verso capaz -
Façamos a paz
E parto o dinheiro!

Cego Aderaldo:

- Negro careteiro,
Eu te rasgo a giba,
Cara de gariba,
Pajé feiticeiro!
Queres o dinheiro,
Barriga de angu,
Barba de guandu,
Camisa de saia,
Te deixo na praia,
Escovando urubu!

Zé Pretinho:

- Eu vou mudar de toada,
Pra uma que mete medo -
Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!

Cego Aderaldo:

- Zé Preto, esse teu enredo
Te serve de zombaria!
Tu hoje cegas de raiva
E o Diabo será teu guia -
É um dia, é um dedo, é um dado,
É um dado, é um dedo, é um dia!

Zé Pretinho:

- Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu também, da minha parte,
Canto versos aprumado -
É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!

Cego Aderaldo:

- Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!

Zé Pretinho:

- Cego, agora puxa uma
Das tuas belas toadas,
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas -
Quase todo o povo ri,
Só as moças 'tão caladas!

Cego Aderaldo:

- Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta -
Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!

Zé Pretinho:

- Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo -
Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!

Cego Aderaldo:

- Disse uma vez, digo dez -
No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa -
Paca cara pagará,
Quem a paca cara compra!

Zé Pretinho:

- Cego, teu peito é de aço -
Foi bom ferreiro que fez -
Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!

Cego Aderaldo:

- Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima,
Que não lhe caia na cara -
Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!

Zé Pretinho:

- Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já -
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca cacará!

Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse:
- Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juizo,
Que o cego canta sozinho!

Ficou vaiado o pretinho
E eu lhe disse: - Me ouça,
José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!

Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto -
Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!

Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha,
Busquei o negro na sala,
Mas já estava na cozinha -
De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!

- Fim -

Fonte: Blog Coisas Nossas e Peleja de Cego Aderaldo Com Zé Pretinho

Dona Canô

CLAUDIONOR VIANA TELES VELOSO
(105 anos)
Cidadã Baiana Centenária

* Santo Amaro da Purificação, BA (16/09/1907)
+ Santo Amaro da Purificação, BA (25/12/2012)

Claudionor Viana Teles Veloso, mais conhecida como Dona Canô, era uma cidadã baiana centenária. Mãe de seis filhos, entre eles os músicos Caetano Veloso e Maria Bethânia. É viúva de José Teles Veloso, Seu Zeca, funcionário público dos Correios e Telégrafos, falecido em 13 de dezembro de 1983, aos 82 anos.

Considerada uma das mais ilustres cidadãs de Santo Amaro da Purificação, teve publicadas suas memórias no livro "Canô Veloso, Lembranças Do Saber Viver", escrito pelo historiador Antônio Guerreiro de Freitas e por Arthur Assis Gonçalves da Silva, falecido antes do término da obra.

Dona Canô organizava periodicamente Terno de Reis na cidade.

Dona Canô e Lula

Em 2009, Caetano Veloso, em entrevista a O Estado de São Paulo ao qual declara seu apoio à candidatura de Marina Silva, disse:

"Não posso deixar de votar nela. É por demais forte, simbolicamente, para eu não me abalar. Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro. Ela fala bem."
(Caetano Veloso, O Estado de São Paulo)

Esta frase em especial causou grande repercussão, chegando a fazer com que Dona Canô quisesse ligar para o presidente Lula para pedir desculpas por Caetano Veloso.

"Lula não merece isso. Quero muito bem a ele. Foi uma ofensa sem necessidade. Caetano não tinha que dizer aquilo. Vota em Lula se quiser, não precisa ofender nem procurar confusão."
(Dona Canô)

A polêmica praticamente se encerrou após Lula ligar pessoalmente para Dona Canô e perdoar Caetano Veloso.

"Não fique chateada, preocupada, porque gosto muito da senhora e gosto do Caetano também. Está tudo bem, essas coisas acontecem."
(Presidente Lula)

Sobre a Fama

Dona Canô também era cantora, e fez grandes cantos religiosos. Apareceu em alguns vídeos na internet, cantando com os filhos.

Quando perguntada sobre a própria fama, Dona Canô diz que não entende a razão:

"Apenas fiquei conhecida por causa de meus dois filhos que nunca se esqueceram de onde vieram nem da mãe que têm."
(Dona Canô)

Celebração

No dia 16 de setembro 2012 a cidade de Santo Amaro recebeu mais uma vez a celebração pelo aniversário da matriarca dos Veloso que completou 105 anos em 2012.

O aniversário de Dona Canô foi festejado com uma missa na Igreja da Purificação seguida de uma festa na casa da família, que este ano foi restrita para os mais íntimos.

Saúde

Em 07/07/2011, Dona Canô foi hospitalizada com dores abdominais e falta de ar. Durante o período de uma semana, os boletins médicos do hospital, assinados pelo médico pneumologista Guilherme Montal e pelo cirurgião Paulo Amaral, assinalavam que a paciente respirava sem ajuda de aparelhos e estava lúcida.

Morte

Claudionor Viana Teles Veloso, mais conhecida como Dona Canô, morreu aos 105 anos, na terça-feira, 25/12/2012, em sua residência localizada na cidade de Santo Amaro da Purificação. Dona Canô esteva internada por seis dias, recebendo alta do Hospital São Rafael, em Salvador, na sexta-feira, 21/12/2012. Ela tinha sofrido um ataque isquêmico cerebral, que gera redução do fluxo de sangue nas artérias do cérebro, segundo informou o boletim médico.

De acordo com informações de Edson Nascimento, amigo da família, Dona Canô pediu um vestido novo e branco para deixar o hospital. Foi com ele que ela foi vestida para a cidade, acompanhada da filha Mabel. Maria Bethânia acompanhou a transferência da mãe.

Antes da alta, seu quadro neurológico era considerado agudo, mas ela seguia consciente e respirava sem ajuda de aparelhos.

Dona Canô era considerada uma das mais ilustres cidadãs de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Teve suas memórias publicadas no livro "Canô Velloso, Lembranças do Saber Viver", de Antônio Guerreiro de Freitas e Arthur Assis Gonçalves.

Fonte: Wikipédia, A Tarde e G1
Indicação: Pedro Lex  

Madame Satã

JOÃO FRANCISCO DOS SANTOS SANT'ANNA
(76 anos)
Transexual, Bandido e Figura Folcórica

☼ Glória do Goitá, PE (25/02/1900)
┼ Rio de Janeiro, RJ (11/04/1976)

João Francisco dos Santos, mais conhecido como Madame Satã, foi um transformista, visto como personagem emblemático da vida noturna e marginal carioca na primeira metade do século XX.

Filho de Manoel Francisco dos Santos e Firmina Teresa da Conceição, criado numa família de dezessete irmãos, diz-se que João Francisco chegou a ser trocado, quando criança, por uma égua.

Jovem, foi para o Recife, onde viveu de pequenos serviços prestados. Posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro, indo morar no bairro da Lapa. Analfabeto, o melhor emprego que conseguiu foi o de carregador de marmitas, embora houvesse o boato de que foi cozinheiro de mão-cheia. Considerado marginalizado, acredita-se que o fato de ter sido negro, pobre e homossexual tenha contribuído.


Dito dotado de uma índole irônica e extrovertida, João Francisco encantou-se pelo carnaval carioca. Foi assim que, em 1942, ao desfilar no bloco-de-rua Caçador de Veados, surgiu seu apelido. O transformista se apresentou com a fantasia Madame Satã, inspirada em filme homônimo de Cecil B. DeMille.

Era frequentador assíduo do bairro onde morava, conhecido como reduto carioca da malandragem e boemia na década de 1930, onde muitas vezes trabalhou como segurança de casas noturnas. Cuidava que as meretrizes não fossem vítimas de estupro ou agressão.

Foi preso várias vezes, chegando a ficar confinado ao Presídio da Ilha Grande, agora em ruínas. Freqüentemente, Madame Satã enfrentava a polícia, sendo detido por desacato à autoridade. Considerado exímio capoeirista, lutou por diversas vezes contra mais de um policial, geralmente em resposta a insultos que tivessem como alvo mendigos, prostitutas, travestis e negros.

É considerado uma referência na cultura marginal urbana do século XX.

Em 1971, concedeu uma polêmica entrevista ao jornal O Pasquim.


Morador da Vila do Abraão, Madame Satã era principalmente uma criatura enfurecida que não se conformava. Era um verdadeiro rebelde nacional ao longo de seus 76 anos de vida, 27 dos quais transcorreu como detento de vários presídios, dentre eles, o Instituto Candido Mendes em Dois Rios na Ilha Grande.

João Francisco definia-se como "Filho de Iansã e Ogum, devoto de Josephine Baker", inventando para si vários personagens como Mulata do Balacochê, Jamacy, a Rainha da Floresta, Tubarão, Gato Maracajá.

Cumpriu pena de 16 anos por assassinato de um policial em 1928. A ficha criminal ao longo de sua vida é vasta: No total foram 27 anos e 8 meses de prisão, 13 agressões, 4 resistências à prisão, 2 furtos, 2 recepções de furtos, 1 ultraje público ao pudor, 1 porte de arma, resistência à prisão entre outros.  

O último malandro da Lapa, área boêmia do Rio de Janeiro. Rei da navalha, da capoeira e um dos marginais mais famosos do país.

Madame Satã x Geraldo Pereira

Madame Satã era bastante famoso no baixo mundo carioca; homossexual, negro, artista de cabarés decadentes e, acima de tudo, valente, um homem que não levava desaforo para casa. Já matara, já brigara centenas de vezes, na maioria para defender seus direitos, em uma época que direitos para pessoas como ele não eram respeitados, e já passara dezenas de anos preso pelos mais diversos motivos. Seu encontro e sua briga com Geraldo Pereira naquele dia fatídico, no mês de maio de 1955, hoje estão envoltos em lendas e boatos.

Depois disseram que Geraldo Pereira já estava muito doente, emagrecendo a olhos vistos. Disseram até mesmo que, quando de seu aniversário, em 23/04/1955, passara mal no banheiro, com crises de vômito. Diziam também que já vinha evacuando sangue há algum tempo e que seu fígado estava em frangalhos, o que era de se esperar pela vida desregrada que levava.

Uma das versões conta que sua morte aconteceu logo depois de uma briga de bar, por causa de um copo de chopp, com Madame Satã. Depois da discussão no Restaurante Capela, na Lapa, Madame Satã teria acertado um soco no rosto de Geraldo Pereira, que, bêbado, perdeu o equilíbrio e caiu na calçada, na porta do bar. Com a queda, bateu com a cabeça no meio-fio, ficando desacordado, sendo carregado para o Hospital dos Servidores, onde morreu dois dias depois vítima de hemorragia intestinal reincidente. Muitos de seus amigos, porém, garantem que ele morreu de vítima câncer.

Madame Satã assim contou para O Pasquim o incidente com Geraldo Pereira:

"Eu entrei no Capela, estava sentado tomando um chopp. Ele chegou com uma amante dele (ainda vive essa mulher), pediu dois chopps e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chopp dele e cismou que eu tinha que tomar o chopp dele e ele quis tomar o meu copo, e eu disse pra ele: 'Olha, esse copo é meu'.
Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então peguei meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos de palavras 'obicênias', eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele: caiu com a cabeça no meio fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo médico, porque foi para a assistência ainda vivo."

Contando com apenas 37 anos, e de maneira inglória, assim morreu um dos maiores compositores da fase de ouro da música popular brasileira.

Morte

Faleceu logo após a sua última saída da prisão, em abril de 1976 em sua casa, hoje um camping, vítima de câncer no pulmão, famoso mas sem um tostão. Foi sepultado no Cemitério da Vila do Abraão e em sua lapide consta uma foto em preto e branco de 1975 com seu nome completo e apelido, data de nascimento e de sepultamento.

Madame Satã teve publicado em 1972 o livro "Memórias de Madame Satã" e no ano de 2002, foi rodado no Brasil um filme sobre sua vida, que leva também o nome de "Madame Satã", dirigido por Karim Aïnouz, contando o início de sua história nos palcos da Lapa até a prisão pelo assassinado do policial em 1928. O filme foi premiado nacional e internacionalmente. Nesse filme, João Francisco dos Santos foi interpretado pelo ator Lázaro Ramos.

Zé Peixe

JOSÉ MARTINS RIBEIRO NUNES
(85 anos)
Prático e Figura Folclórica

☼ Aracajú, SE (05/01/1927)
┼ Aracajú, SE (26/04/2012)

José Martins Ribeiro Nunes, mais conhecido como Zé Peixe, foi um Prático brasileiro, nascido em Aracajú, SE, no dia 05/01/1927, que se tornou uma figura lendária no estado de Sergipe, devido ao seu modo incomum de exercer sua atividade. Foi agraciado com diversos prêmios e homenagens, e é lembrado como uma dos sergipanos mais notórios de todos os tempos.

Por muitos anos, Zé Peixe atuou como Prático conduzindo embarcações que entravam e saíam de Aracaju, pelo Rio Sergipe. O inusitado, em sua tarefa, se devia ao fato de não necessitar de embarcação de apoio para transportá-lo até o navio. Quando havia um navio necessitando entrar na barra do Rio Sergipe, ele nadava até o navio. Da mesma forma após conduzir o navio até fora da barra ele saltava e voltava para a terra nadando. Algumas vezes ele saia em uma embarcação e nadava até uma boia que sinalizava o acesso a barra de Aracaju onde aguardava as embarcações que necessitavam de seus serviços para entrar na barra.

Nascido em Aracaju, filho de Vectúria Martins, uma professora de matemática e de Nicanor Nunes Ribeiro, um funcionário público. Era o terceiro de uma prole de seis crianças e foi criado em uma casa em frente ao Rio Sergipe, na atual Avenida Ivo do Prado próximo a Capitania dos Portos e que pertencera aos seus avós, onde viveu até sua morte. Aprendeu a nadar com seus pais, e desde a infância brincava no rio ou o atravessava a nado para pegar os frutos dos cajueiros da outra margem.


Com 11 anos já era um exímio nadador, enquanto os outros meninos iam de canoa até a Praia de Atalaia, ele ia a nado. Um dia o comandante da marinha Aldo Sá Brito de Souza estava desembarcado na Capitania dos Portos pois sua âncora tinha enganchado no fundo do rio, e ao observar a destreza do garoto José Martins, o apelidou de Zé Peixe, alcunha que se firmou.

Dos irmãos, Rita (que também ganhou o apelido Peixe) era a única que o acompanhava nas aventuras no rio, mesmo a noite. Com a desaprovação dos pais que achavam que este não era um comportamento adequado para uma menina, sempre lhes dando broncas e mesmo escondendo a roupa de banho da garota, o que nada adiantava pois iam nadar com o uniforme escolar mesmo, o qual colocavam para secar depois nos fundos da casa.


Seus pais também preferiam que Zé Peixe se ativesse aos estudos e lições de casa, mas ele só queria saber de ficar na praia vendo o fluxo dos barcos e desenhando navios, ou no rio orientando os capitães sobre as mudanças dos bancos de areia de seu leito.

Marcos Carvalho (autor do Blog) junto a estátua de Zé Peixe no Museu da Gente Paraibana, em Aracaju, SE.
Fez o ginásio no Colégio Jackson de Figueiredo e concluiu o segundo grau no Colégio Tobias Barreto. Quando Completou 20 anos ingressou no serviço de Prático da Capitania dos Portos. Casou-se na década de 60, mas nunca teve filhos, e era viúvo há 25 anos de Maria Augusta de Oliveira Nunes.

Seu jeito vigoroso, corajoso, independente e trabalhador sempre foram vistos como exemplos de caráter e de um envelhecimento digno. Foi tema de vários jornais, revistas, livros, entrevistas e reportagens televisivas ao longo das décadas, tanto nacionais quanto internacionais. Foi uma das atrações que conduziu a tocha pan-americana em Sergipe durante os Jogos Pan-Americanos de 2007 no Rio de Janeiro, fazendo o trajeto de barco.

Antes de falecer se afastou do mar, pois sofria de Mal de Alzheimer, que o deixou limitado e restrito à sua casa onde era assistido pela família.

Praticagem

Em 1947, seu pai o fez ir até o serviço da Marinha, onde mediante concurso foi admitido como Prático do Estado lotado na Capitania dos Portos de Sergipe, profissão que exerceu por mais de meio século (naquela época a remuneração do prático era bem mais modesta).

A barra do Rio Sergipe era uma das piores entradas portuárias do país. Zé Peixe pela sua dedicação e seu conhecimento detalhado da profundidade das águas, das correntezas e da direção do vento sempre se destacou no serviço de Praticagem.

Mas era seu modo peculiar de trabalhar que o fez famoso em vários meios de comunicação. Quando um navio tinha que sair do porto guiado pelo Prático, ele não se utilizava de um barco de apoio. Subia a bordo e uma vez guiada a embarcação para o mar aberto, amarrava suas roupas e documentos na bermuda e saltava do parapeito da nave em queda livre de 17 metros até a água (equivale a um prédio de 5 andares), e nadava até 10 km para chegar a praia, e ainda percorria a pé outros 10 km até a sede da Capitania dos Portos.

Nas chegadas dos navios ao porto, as vezes se utilizava de uma prancha para ir em busca das embarcações mais distantes e as aguardava em cima da boia de espera (a 12 km da praia) durante toda a noite ou mesmo durante todo dia, até a maré ser propícia a aproximação e ao desembarque no porto. Estes feitos eram realizados até em sua idade mais avançada, o que surpreendia tripulação e comandantes desavisados. Certa vez um comandante russo ordenou que o segurassem antes do salto, pois pensou que o mesmo estava fora de si.


Várias outras situações demonstravam sua bravura na profissão, o que lhe rendeu muitas homenagens. Já aos 25 anos salvou três velejadores do Rio Grande do Norte. Quando vinha orientando uma embarcação a vela para fora da barra, a mesma virou e lançou todos os tripulantes no mar revolto. Zé Peixe e sua irmã Rita conseguiram trazer a salvo os velejadores até a praia. Outro acontecimento foi com o navio Mercury, que vindo com funcionários de uma das plataformas da Petrobrás, pegou fogo em alto mar. O Prático chegou ao navio em chamas em um barco de apoio, e apesar do risco de explosão, subiu a bordo e orientou a embarcação até um ponto mais seguro onde todos pudessem saltar e nadar para terra firme.

Foi agraciado com vários prêmios e medalhas:

  • Pelo salvamento da iole potiguar (barco a vela) recebeu a Medalha ao Mérito em Ouro do Rio Grande do Norte. 
  • Por seus dedicados anos de trabalho recebeu a Medalha Almirante Tamandaré (criada em 1957, homenageia instituições e pessoas que tenham prestado importante serviço na divulgação ou no fortalecimento das tradições da Marinha do Brasil).
  • Homenageado com a Medalha de Ordem do Mérito Serigy, mais alta condecoração do município de Aracaju.
  • Eleito o Cidadão Sergipano do Século XX.

Em 2009, com 82 anos e já enfermo, solicitou junto à Marinha seu afastamento definitivo da Praticagem (Portaria N 141/DPC, 13/10/2009).

Estilo de Vida

Um homem franzino e introvertido de 1,60m de altura e 53 Kg, sempre cativante pela sua humildade, dignidade e simpatia. Zé Peixe quase nunca comia ou bebia água doce, sua dieta se baseava em pães com café pela manhã e era rica em frutas durante todo o dia. Também não fumava, nunca bebeu álcool, dormia às 20h00 e acordava às 06h00. Apesar da insistência dos pais, desde criança não tomava banho de água doce, pois vivia no mar, no entanto possuía um ritual de manter barba e cabelos sempre cortados.

Quando fora de serviço, gostava de ir cedo cuidar de seus botes atracados em frente a Capitania dos Portos, ir tomar banho de mar e andar de bicicleta até o mercado onde comprava frutas. A pé ou em bicicleta, só andava descalço. Usava sapatos somente em ocasiões especiais ou quando ia às missas da Igreja do São José ou do Colégio Arquidiocesano.

Nunca saiu do lugar onde nasceu. A antiga casa é toda pintada de branca por fora e dentro é toda azul e muito simples. Entulhada de lembranças, títulos e medalhas que juntou na vida, além de miniaturas e desenhos de barcos, e de imagens de santos católicos.

Zé Peixe faleceu na tarde de 26/04/2012, vítima de insuficiência respiratória, aos 85 anos, em Aracaju, SE.

Fonte:  Wikipédia